O viço

“Quando pensou que aquela grade era a grade da velhice, sentiu por ela uma piedade imensa, e essa piedade tornou-a mais próxima (essa mulher outrora deslumbrante, que o fazia perder a fala) e teve vontade de conversar com ela como um amigo conversa com uma amiga, longamente, na atmosfera azulada da resignação melancólica.” Milan Kundera

Oswaldo_Goeldi

Dissera que perdera o viço. Diziam isto. Que sua pele de pera agora transformara-se em maracujá. E que suas cicatrizes jaziam bem mais expostas e visíveis. Disseram-lhe. Dizia. Ao caminhar lentamente, pela praia ou ao redor dos sonhos, segurando o próprio travesseiro como que para aprisionar os sonhos, suas pernas sentiam o pendor dos anos. O pendor de horas, de meses, de dias, passados sob a maresia da praia, sob os mares, sob os sonhos. Estava imersa. Dissera. Diziam.

Não povoava o imaginário de seus familiares, de antigos amores, nem se noticiava que haveriam futuros. Um sentimento ínvio lhe amotinava, passava por seus calcanhares até chegar ao umbigo. Neste umbigo talvez a única prova de que estava viva. Dissera. Diziam. Um cadáver pode caminhar pela orla da praia, pelas bordas das cidades, e se agarrar ao tênue fio dos sonhos, um cadáver pode, pois ainda possui ossos e seus pelos e unhas ainda crescem por um tempo longo. Um cadáver fresco, um cadáver novo. No preâmbulo de sua existência notara uma cor de maçã, e um cheiro de nozes, que agora jaziam podres e se misturavam aos cheiros fortes da morte, à ausência de uma cor definida, à iluminação do preto que mescla sobre todas as cores e sobre todas as mortes um sentimento que aniquila as colorações. Uma ausência de luz. O cinza a perpassar, a cinza, e tornar comuns todas as formas, transformando-as num bloco de concreto, cinza, uma massa unilateral, sem requinte, requentada como acontecimento banal e repetido, para quem o choro é sempre um alento, um novo viço, como o som de palmas para os artistas. Não percebia que aquela conformação fora por ti perseguida instintivamente, como se o sopro da imanência estivesse ligado aos deslizes da alma e às chagas da carne. Não percebia que aquela conformação fora por ti perseguida primitivamente, e que sobre o caráter rijo das horas ainda era capaz de enxergar um lagarto na folha verde que rasteja no chão. Ainda era capaz de sustos. Ainda era capaz de sentir sustos. E se deparar com um lagarto que nada mais era do que uma folha verde que, ali, naquele momento, naquela imagem, naquela conformação, rastejava no chão. Rastejava e procurava os joelhos de quem beijar. Os joelhos da morte. Os joelhos da conformação. O espanto primeiro já não era mais o mesmo. Subvertera-o. Modificara-se. Como da primeira vez que vestira saias. Da primeira vez que se enfeitara com batom e sutiã. Da primeira vez que investira em brincos para aquelas orelhas singulares. Da primeira vez que beijara um homem. Da primeira vez que beijara o sexo de um homem. Da primeira vez que guardara em sua boca, como o faz o pelicano com a comida ou o canguru com a cria, todo o espanto, toda a força, todo o desespero que era o produto da ejaculação daquele homem. Aquele homem comum. Que perdera o viço e já não tinha as formas e as cores tão bem definidas como antes. Que era agora toda uma massa cinza e volúvel. Talvez uma memória, uma lembrança, uma sensação, um gosto na boca, no peito e nos ossos. Imóveis os aços, os metais e erros crassos que cometera no preâmbulo de sua existência, e ainda ressoavam em sua movimentação, iam, como por milagre, se esfumaçando, se pulverizando nos rostos de mais de um homem que eram na verdade um só. Que era apenas ossos e pelos e unhas e nada mais. Nada mais que um cadáver, um monstro da criação. Levara uma vida desmedida. Levara uma vida bordada nas recusas e nas rejeições. Levara, e agora seria levado pela infalível morte. Tão compatível e formidável quanto o sexo de um homem. O gosto de um homem em sua boca. Dissera que perdera o viço. Diziam. Que era cadáver.

goeldi

Raphael Vidigal

Imagens: Xilogravuras do artista plástico Oswaldo Goeldi.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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