Dos prazeres mananciais

“mas, tão logo essa palavra ‘amor’ lhe ocorreu, ela a rejeitou, pensando novamente quão obscura era a mente, com suas pouquíssimas palavras para todas essas percepções surpreendentes, essas alternâncias de prazer e dor.” Virginia Woolf

krajcberg

Sentia um prazer quase manancial quando descia as escadas para demitir alguém. No entanto, passam pessoas e não é ela. Através da vitrine a espera torna-se a cada segundo mais insuportável, como a pressão que a corda vai exercendo no pescoço do enforcado à medida que o corpo cede. Imbuído de minha coragem e destituição fui até o jornal pedir meu emprego de volta. Sentia um prazer quase manancial quando descia as escadas para demitir alguém. Era preciso lembrar dessa frase para não ser surpreendido. E não esquecer que na maioria das vezes a presa, seja ela qual for, leva a melhor sobre a onça.

Sentia um prazer quase manancial quando descia as escadas para demitir alguém. No entanto, passam pessoas e não é ela. As pessoas na redação são observadas por mim como manequins em vitrines. Os rostos impávidos, lúbricos, de quem detém o emprego como o vazio da morte, o segredo da morte, e recusa-se a dividi-lo, não quer dividi-lo com mais ninguém. Sem dúvida, sentem-se como deuses por possuírem um emprego e não terem que passar pela humilhação do pedido, que requer coragem e a lembrança de que, seja qual for a presa, na maioria das vezes é ela quem leva a melhor sobre a onça.

Penso em como um animal tão indefeso pode causar tanto mal a alguém? Passam pessoas e agora é ela. Tem as unhas tingidas de preto, os cabelos amarrados num coque grosseiro, o batom invadindo o espaço das bochechas, do queixo, de tanto gritar, certamente. Certamente é de tanto gritar. Sentia um prazer quase manancial quando descia as escadas para demitir alguém. Tropeço e me vejo de quatro diante dela. Tropeço nas escadas que me põe de quatro no chão. Todo ralado e sem leque, sem uma possibilidade de abano sequer, de uma colher de chá, de uma chance, me ponho a chorar. Choro, e sentencio a vida Helena, a vida helenística. Estou no limbo.

No entanto, é nesse momento que me lembro, quando agarrada, a presa não desiste, o porco solta os espinhos, a cobra solta veneno, o lagarto solta veneno, mas eu, só tenho quatro patas que me põe de quatro no chão. Desisto. Volto ao meu retiro de onde a observo pela luz da vitrine. Pelo auxílio da literatura eu a transformo em onça e agora posso vingar-me. Pinto com cabelos grosseiros, com unhas tingidas de preto, com um batom vermelho invadindo o espaço das bochechas e dos queixos aquela que se impõe resoluta, que detém a beleza e o poder, que possui seios perfeitos, macios e firmes, imagino, um nariz de Cleópatra que observo, uma bunda altiva e consistente, um sino na garganta perfeita, com a qual anuncia que estou demitido.

Sentia um prazer quase manancial quando descia as escadas para demitir alguém. Era linda, e pervertida. Era uma imagem da beleza grega. Um concerto, uma seresta, uma sessão de craviolas. Como pode uma beleza tão perfeita resguardar tamanha crueldade? Como pode um animal tão indefeso? Como pode uma onça trucidar os ossos e dilacerar as carnes de bichos como cobras, jacarés e antas? Como pode a beleza ser tão destrutiva? Sentia um prazer quase manancial quando descia as escadas para demitir alguém. Aguardo, com um gesto atávico, que venham realizar meu acerto, ao que ela me anuncia: – Sinto um prazer manancial quando desço as escadas para demitir alguém. E elimina o “quase”.

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Raphael Vidigal

Imagens: esculturas do artista plástico Frans Krajcberg.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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