“Deixai entrar a Morte, a iluminada
A quem vem para mim, pra me levar
Abri todas as portas par em par
Como asas a bater em revoada” Antero de Quental
O homem é o único animal capaz de tirar a própria vida. Capaz, portanto, de vencer o instinto de sobrevivência, ou de sair perdendo. Ao enfiar o pé no acelerador do carro contra o poste a faca encerra-se ainda mais na barriga cheia de remédios, e o nó já está pronto. Duas filhas. Por que trazê-las para este mundo? A vida e sua espera resignada dos fatos não suficientemente afasta a consciência da morte.
Ao entrar no veículo tinha dinheiro suficiente para se mudar de cidade. Abandonar a terra natal que lhe dera aspereza e sal e ir em busca destes colírios no mar. No interior de uma praia onde a areia desenha seu rosto com conchas ocas, lambaris que se escodem, pedrinhas e a bege cor do desânimo. Numa destas praias em que o herói de Albert Camus cometeu o assassinato por conta do sol e esperou paciente por uma sentença de morte. Quando a explosão ocorre a vida ainda pulsa em suas veias.
A consciência da morte. Da putrefação. Do destino intransferível de toda e qualquer carne animal. E mais ainda. De toda e qualquer carne que é viva. E mesmo dos que não tem carne. O tempo passando sobre nossos ordinários sonhos, as pretensões de imortalidade, não esquecimento. O tempo penetrando em cada pedaço de carne e dando a sentença lenta, a marca de cada detalhe, como numa confecção de vinho, de seda, o acrílico e o cisco que se grudam no fundo, uma pequena imagem do que foi bebível e utilizado para exposição. A cobra, ou o tigre, ou a planta carnívora terão na carne o mesmo destino, mas a consciência da morte é mais que um instinto. É uma sentença como a escravidão diante de um Deus desconhecido.
Com a extremidade da faca toda enfiada em seu abdômen, restando somente a madeira de base do lado externo, a cor de seus olhos, como a cor de seus cabelos, a cor de seu sorriso, de seu êxtase maníaco é todo um vermelho que brilha, um vermelho exuberante, vivo, o festejo da morte, paradisíaco como a praia que desenhou na areia seu bege rosto, seu bege sonho, sua existência lateja, e ainda vive.
Ensandecidos os fanáticos proclamarão a prevalência do espírito. A alma do único animal capaz de tirar a própria vida. Capaz, portanto, de vencer o instinto de sobrevivência, ou de perdê-lo. A consciência de que tudo que a terra come é inútil, pois está reservada para este ser uma vida livre de enfrentamentos, livre de conflitos, uma vida sem a sombra da morte, sem o seu capuz violento, uma vida através da morte, uma vida plena.
Na plataforma de onde jorram rios de dinheiro ingere uma dose absurda de barbitúricos. Quer encontrar-se com a vida. Pois esta existência é mortífera.
Porquê a lógica não lhe deu as respostas procurou-as no misticismo. Adquiriu um faisão como companhia, para afastar a solidão. Deixou no mundo duas filhas. Um matrimônio desfeito, que deu venenos e frutos. Um baú do tesouro encantado com sacolas e sonhos e rios de dinheiro. A imagem riscada na praia e a foto em digital.
O nó já está pronto. Enfeita-o ao redor do pescoço como um colar. Eleva-se na cadeira qual monarca. Ri para os que ficam.
Aqueles que buscarem motivos para morrer encontrarão as mesmas raízes na vida.
Como o punhal das formigas.
Há razão para viver?
Raphael Vidigal
Ilustrações de J. Carlos.