O fim da cidade

“É uma hora irreal o cair da tarde. Não estamos vivos nem mortos. É a hora em que nos despedimos, nos arrependemos, ou esquecemos até o espírito de vingança, a grande nostalgia toma conta de nós, devia ser belo, e não é.” Augustina Bessa-Luís

Pintura de Paul Gauguin

Invadem a cidade, esterilizam os pais, abrem as vaginas, expulsam o clitóris de lá. Exilada exala um ocre odor vagabundo. Famintos cachorros devoram ossos. Uma dinâmica inocula a cólica. Bebem catre. A cidade entope: gente, cimento, animal. É-lhe peculiar e cúmplice: o incesto, o estupro. Pedra de néon: a vermelha flor: uma bromélia: o domo: lilases: povo: roxo. Querem parir as barrigas de nove meses querem partir as clandestinas visões de sêmen: creches engolem crianças: asilos internam velhos. Platina o tédio.

Há mais dinheiro. Há mais comida. Há nos canteiros arrotos de fibra. Há um prisioneiro na jaula torcida. Meu desejo é o de te ver o quanto antes, mas o relógio não é exato quando se tem: saudade: o ponteiro anda lento coração bate celerado a expectativa aumenta na medida em que a espera cansa vai chegando ao fim te amo. Saudade: essa palavra larga só comprime e não exprime o tamanho: do que sinto: falta nome apenas: grito: meu pedacinho doce de jabuticaba: geleia de framboesa: amora. Sacrificar o filho pelo bem do pai. A cidade afunda em banzo.

Com os cabelos escovados, pretos, bem pretinhos mesmo, pinta de joaninha em cima do casco vermelho que é tua carinha vermelha e bem asseada: Aline. Desconjura o diabo que rouba e que late: mas em época de eleição, aguarde: ele a sorrir no fenício estandarte: munido de alto-falante. Vive a considerar fantasia: mudar da noite para o dia: o rosto onde vive: Aline. De repente uma maneira grande: uma mulher, encurvada e hesitante: pequena. Como que habita o coração, de terra batida, auréola encurvada, invisíveis asas de papelão: debatem-se.

Em frente às cascatas, tem olhos de distância. Vê como uma menina a luz do dia na cachoeira, embora o tempo lhe crave rugas e ranhos na testa, nos braços, na vida. Os olhos estão marejados, entendo. Aline é descrente. Uma cidade em centopeia – assim, espichada mesmo – comprida – feérica – cheia de perninhas a esgarçar – lamentos – tremeliques – beijos – palavras – soltas no ar – para que a aranha – grude – teia – não são os outros – todos? – não mais reconhece os rostos – não mais reconhece as caras – não mais reconhece as faces – é preciso atravessar o mar para pegá-la – borboleta rápida – grunhindo – rosnando – mordem.

Obra do pós-impressionista francês Gauguin

Raphael Vidigal

Pinturas: Obras de Paul Gauguin.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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