“Esta desmaterializava o compacto.” Clarice Lispector
Uma mulher negra com um bebê branco no colo. Face coberta, não tem os olhos. Aranha de pelos e braços longos: gérmen gruda nu cólon. A aranha tece a teia rapta o inseto minúsculo. Só sei que ela morre. E o filhote sobrevive.
Porque aconteceu algo durante a noite. E eu estava lá. Mas era dia. Mas os carros não a deixavam passar. E ela nem se sabe se quer atravessar a rua. Ela uma mulher negra. NA RUA. Ele um bebê branco. NO COLO.
É ela que morre. Como quem vê um pão dando sopa na padaria: um relento, um fascínio: ela o viu. Mas era um bebê. Aferido como joia do mais alto quilate. Que é que se tornou se tornaria a regressar ao lar se a polícia e a milícia e o combate fizessem a sua parte (Hei de trocar milícia e parte por malícia e porte, mas não convém).
Quem a reconheceu foi o velho de boné vermelho e óculos escuros segurando a bengala. A negra rua mulher com bebê colo no branco. O velho atávico com a bengala marrom na mão conduziu o coro. Proclamaram paz com a mão no pescoço da mulher, chutes nos dentes, sangue nas latarias dos carros.
O velho de boné vermelho é o escuro personagem que oferece luz nos dentes com seu sorriso de vertigem pela colheita do sangue petrificado na calçada. Aurora insígnia, insignificantes esforços de sobreviver debaixo de cobertores feitos de telhas furadas unhas quebradas costelas danificadas.
E ela roubou o bebê. Sim, ela roubou o bebê de uma boa senhora, mãe dedicada, coração de verdades e mentiras, com culpas e remorsos como a assassina a ladra, que agora talvez seja a mesma, talvez sempre fossem e sempre serão.
Sonharão sonhos de bolacha. E os da que não tem farinha retornarão ao farelo, ao saco, antes do pó da vida lavar as juntas. Levá-las juntas.
As justas e as sofridas mães de berço. Oferecem colo ao bebê da maternidade. Esmiúçam esmolas em latas de lixo. Não quero oferecer compaixão e piedade a essa demolida ladra de pele negra, cabelos castanhos, olhos verdes, pelos de aranha que gruda e sibila: covarde: ante o antro da depravação de seus pares.
Não devo por isso a esconjuro, chamo de ladra. Como não quero, não ofereço nem dor nem solidariedade nem piedade à mãe na maternidade, estancando ainda o sangue do parto científico chorando a perda da criança amada, exibindo a beira de sua condição humana, desejando morte e medo e sangue a quem lhe tirou o que por direito era seu. O que ela gerou é seu, e ninguém pode encostá-lo a pata. “Em suas próprias palavras”. Por isso revelo que ela usou a palavra pata. E determinou a caça à mulher, que nem sequer tenta atravessar a rua. Mas os carros não deixam. A vida passa. Os pássaros a coaxar e os sapos chacoalham. Com corpos verdes e grudentos e sujos. Os humanos os sapos os pássaros as aranhas.
Surge a placenta e o despertar de um novo dia. Pois quero que de repente nada disso tenha havido. E a mulher que já não é negra nem é branco, não é sapo nem aranha, não é humana, simplesmente não habita mais as linhas e os pesares de seus familiares. Diante de seu caixão, eles já não choram. Os jornais apagaram a notícia da mulher linchada na rua, flutuando o cruzamento, jogada por cima dos carros e por baixo das gentes das saias das calçolas das cruzes e dos colares.
O filho que ela roubou não era filho, mas pão. No azar das contingências da vida ela se confundiu entre os anúncios televisivos que piscam em simetrias alteradas. E o devorou. Como o pão e o vinho sagrados dos clérigos. Como o ópio e o álcool herege dos viciados. Como a seringa do doente. Como a agulha do médico.
Pertence com suas forças de bebê que ela não teve. Rendeu-se à condição animal, grotesca. Chacoalhante como o voo do pássaro ou a língua no ar do sapo ou as finíssimas pernas da aranha na dança da teia mágica. Que por si só mata. Que só por si mata.
Portanto nada existiu. Em tempo algum. Do espaço dividido e habitado apenas por silêncio e lágrimas, resta agora no chão um fio de corpo solitário. Onde carros passam e se desviam. Como desviaste a vida dessa pobre menina. Mas não foste eu a dar guarida a estas distraídas penas… ignóbeis … inábeis. O bebê a havia roubado a vida.
Raphael Vidigal
Pinturas: “A Dama que descobre os seios”; e “A Apresentação da Virgem”, de Tintoretto.
14 Comentários
Maravilha…
Muito bom!
Adoro tudo que vc escreve rs vou divulgar para os amigos, bjo.
Do meu “amigo-escritor” super talentoso Raphael Vidigal…….
Conte comigo, gosto muito de suas matérias….Parabéns!!!!!
Mais uma vez o genial Raphael Vidigal atacando com um conto
Nossa, vc tem feito coisas lindas! Vou mostrar aos meus bons amigos! Vou lá em cima, na “Esquina”! rsrsrsr Tem coisa boa demais! Por causa do tempo não li tudo. Agora vou aproveitar e apresentar aos meus queridos amigos! Parabéns! Abçs
Mais um trabalho do talentoso Raphael Vidigal… Sempre ótimo vê-lo.
“A Dama que descobre os seios”, parabéns.
A propósito, muito bom hen?! Curti demais! Haha bjo!
Parabéns, to adorando seu trabalho
Meu amigo Vidigal, cada vez mais afiado!
Raphael Vidigal , você é top ! 😉
Que orgulhooo! Saudade Vidiiii!
Texto do querido amigo Raphael Vidigal. Bem interessante.