Literatura: A Menina do Macramê

“da vitrola o som de um solo de clarineta parecendo uma enguia do mar subia em espiral pelo ar agitado.” Truman Capote

Flávio de Carvalho

Cabelos cortados ao pé do ouvido. Nara Leão de pele morena. Aquela vozinha pequenininha capaz de rugir.

‘Me aproveita, amor. Que eu não serei a mesma para sempre’ – disse, cerrando os lábios. ‘Tenho fases, como a lua’. Sentada no chão de encostas, ergue os braços em desagravo. Puxa uma linha, mais outra, cruza os fios de bege castanho imitando ouro.

O que a torna assim tão fascinante é justamente essa história atrás dos pontos.

Macramê vai desfazendo sua viagem comprida, cheia de rochedos espinhosos, quadraturas em Marte, Virgo, Escorpião. Sendo de Câncer, protege a casca desguarnecida. Não importa quantas feridas acumule, crê piamente na Verdade.

Humilde tacanha sabe o seu tamanho. Ao mesmo tempo em que se ressente, imprópria carente, abaliza saltos ornamentais e vasilhames decentes, que constrói antes na cabeça depois no corpo e por último na alma.

Tem saudades além mar, sente a sabedoria arredando espaço para que caiba em tua espinha dorsal tão sobrinha uma família inteira de festa e taças ao vento, cheia de graça e consentimento. Quer ser aceita.

Enquanto enrola os novelos do material largo e fundo, adianta que há na imaterialidade o grande pedaço do presente: ‘Vovó’ não se tece com linhas e agulhas e habilidades técnicas aprendidas em livros de receita; escreve sem medo, com a sensibilidade invisível que enxerga na memória o gesto rijo: refém das forças de um abraço dos olhos com o coração.

Mãos trabalhando serenas, solenes, instituídas dignas através da compensação de oferecer ao outro, ao terreno, ao que planta e nasce e é desfeito pela aterradora fome do Deus. Na sensação que pega e apalpa e cresce infinitamente pelos grãos de bico de pássaro cuspindo cócegas em nossa alma.

A menina do macramê sugere um mistério. Quer ser alma sem ter piedade. Quer ser corpo sem brutalidade. Imagem sem ressurreição e fé sem o sentido vago. Mas não pele não sêmen não indagação divina somente o inferno. E este foge em constelação matemática.

Seus olhos abaixam ao passar de um estilete sobre as horas. Cansada, desfaz os nós com menos paciência, irritação, coceira. Injúrias ao pedido, ao presente para a avó. Não se aborreça, nem culpe a menina do macramê. Ela é justamente perfeita pela indiferença que tens ao humano guardado em espírito. Dentro dela, de seu corpo quase caleidoscópio: Vejo estrelas, meteoros, destruições terríveis e maravilhosas.

Incoerente vigor. Vontade de envelhecer tão rápido. De enfrentar tudo num salto. E apaziguar as dores e venenos e fracassos. Sonhando com o fim do capitalismo como quem sonhou o fim da ditadura. Nobre equívoco. Isto sou eu quem sinto. Mas empresto à menina. E ela rejeita como quem decifra tua aura intolerável e intragável: a tua sina é o macramê, que só a ela se sacrificará.

Esqueça os teus sentidos, você com sede irremediável de sacudir o abismo e dele tirar o rabo da serpente ou a língua da cobra. A menina do macramê sente compaixão pela cobra que quase a matou. Chora a morte da bichana insaciável. Escondida no cano de descarga, a assassina também precisa respirar. E quem engole também é vida criada no cosmos e na soleira. Saltou para a morte, quando o bafo do que treme a expulsou gritando: rodas de automóvel passaram por cima de sua pele escamosa e seca.

Mas as pessoas ainda falam de loucura e tristeza como se fosse uma ressalva. ‘Mas era louca; mas era triste’. Mas à vista do presente chegado ainda há o que completar, derramar infindo, lulas e lunetas, pólos e polvos a sossegar o pranto nosso de cada dia.

Guardada num vidrinho, a cobra mantém os olhos vítreos do que por um segundo lhe arranca os pedaços físicos e desgastados duma vida que se faz subalterna à morte. Aplainada em pontos diversos, que modificam sua fôrma com a velocidade de um chicote, a menina macramê esbugalha os olhos que inventam a soberana vida em relação à morte. Por quê? Porque ela pula pula  pula corda pula, pinta o 7 com aquarela roxa, salta a amarelinha e sempre que chega ao céu volta.

Menina do macramê: O que eu tenho a lhe oferecer é uma travessia louca, desorganizada, cheia de beleza. Te amo.

Bailarina

Raphael Vidigal

Pinturas: obra do cenógrafo, Flávio de Carvalho; e uma das bailarinas de Degas.

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14 Comentários

  • Nossa, esse deve ser o conto de linguagem mais rebuscada que já li de sua autoria! Nem tenho vocabulário suficiente para elogios. A leitura foi muito boa, gostosa, fluente… Acabou de repente! Muitas partes fiquei sem compreender de quem você estava falando. Parece um diálogo muito íntimo!

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  • Procurar elogios dignos a sua escrita é como apanhar estrelas! Palavras inalcançáveis!

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  • Muito feliz pela análise e elogios, Pedro Ramos! Volte sempre ao site. Abraços

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  • Embora, tenha que confessar que muito do você disse…..Me escapou, preciso ler outra(s) vez(es). Mas uma coisa é certa, te amo, Menina do macramê.

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  • Lindo…lindo conto! Pura poesia e sensibilidade…Amei, Raphael! Lí várias vezes e …também amo “A Menina do Macramê”. Continue escrevendo, escreva sempre…Parabéns! Beijos.

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  • Maravilhoso Vidi….. Parabéns!
    Você tem nos presenteado com seus textos, suas poesias e seu bom gosto musical ….. Bjs!

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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