Nome da música de maior sucesso de Luiz Melodia homenageava travesti

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Tente entender tudo mais sobre o sexo
Peça meu livro, querendo eu te empresto
Se inteire da coisa sem haver engano” Luiz Melodia

Em silêncio, o corpo lânguido, esguio, magro, preto e afiado como o de uma pantera exibe gestos entre a gana e a sensualidade. Tudo ali diz que ele está vivo, respira, emite vibrações sonoras por todos os poros. O filme “Todas as Melodias” acontece assim em seus primeiros instantes. “Faz parte de uma linguagem própria, de propor certo distanciamento, uma desconstrução entre os signos, para prestarmos uma atenção distinta a determinados elementos. Melodia era um grande dançarino, seus movimentos incríveis ficam mais claros sem a música”, justifica o diretor Marco Abujamra, sobre a abertura do documentário que tem como personagem Luiz Melodia, morto de um câncer raro na medula óssea há quatro anos, em 2017. Filho do sambista Oswaldo Melodia, Luiz Melodia cresceu no morro de São Carlos, no bairro do Estácio. Em 1973, lançou o seu primeiro LP: “Pérola Negra”.

“Pérola Negra” (MPB, 1972) – Luiz Melodia
Luiz Melodia compôs “Pérola Negra” em 1969, quando tinha 18 anos, e a batizou de “My Black”. Descoberto no bairro do Estácio pelos poetas Torquato Neto e Wally Salomão, recebeu a sugestão de Wally de mudar o nome da música para “Pérola Negra”, que era o “nome de guerra” de uma travesti que Wally conhecia. Foi também Wally quem levou a música para Gal Costa lançar em 1972, no show “FA-TAL: GAL A TODO VAPOR”. Em 1973, Luiz Melodia gravou a sua versão para o seu maior sucesso, no primeiro disco da carreira.

“Estácio, Holly Estácio” (MPB, 1972) – Luiz Melodia
Luiz Melodia estourou pra valer antes mesmo de estrear seu disco na praça, em 1972, fazendo sucesso simultaneamente nas vozes de Gal Costa e Maria Bethânia, que gravaram “Pérola Negra” e “Estácio, Holly Estácio”, numa sequência arrebatadora para a carreira do carioca do Morro de São Carlos criado no bairro do Estácio, onde travou contato com Gonzaguinha (1945-1991), também nascido por aquelas bandas. O bairro do Estácio é o grande protagonista da música de Melodia composta para a sua namorada Rosângela.

“Negro Gato” (Jovem Guarda, 1964) – Getúlio Côrtes
“O negro gato existiu mesmo. Era um gato que não me deixava dormir, ficava no telhado de zinco do meu barraco e toda noite me perturbava. E ele ficava me olhando, encarando. Pensei: ‘um dia isso vai me dar um retorno’. Mas demorou muito pra vir inspiração, foi quase um mês até ficar pronta essa música, que é também um pouco da minha história, porque eu sempre fui um cara sem recursos econômicos, então misturei as duas coisas”, conta Getúlio Côrtes, autor de “Negro Gato”, lançada pelo conjunto Renato e Seus Blue Caps em 1964 e regravada por Luiz Melodia em 1980, no disco batizado de “Nós”.

“O Caderninho” (Jovem Guarda, 1967) – Olmir Stocker, o Alemão
Luiz Melodia sempre foi fã da Jovem Guarda, e, na adolescência, se vestia com camisa de gola alta e calça boca de sino para ficar igual a Roberto e Erasmo Carlos. As roupas eram costuradas por sua mãe. Em 1980, Luiz Melodia fez grande sucesso com sua versão para “Negro Gato”, música de Getúlio Côrtes gravada por Roberto Carlos em 1966. Um ano depois, Erasmo fez sucesso com outra música que Luiz Melodia regravou: “O Caderninho”, composição do guitarrista gaúcho Olmir Stocker, conhecido como “O Alemão”.

“Juventude Transviada” (samba, 1976) – Luiz Melodia
Um dos maiores sucessos de Luiz Melodia, “Juventude Transviada” entrou para a trilha da novela “Pecado Capital”, da Rede Globo, e ficou em primeiro lugar nas paradas. Lançada no disco “Maravilhas Contemporâneas”, de 1976, é dedicada a Jane, mãe de seu filho Mahal. A música foi regravada por Luiz Melodia e Cássia Eller em 1997, num dueto para o disco “Casa de Samba 3”. O título da canção repete o do filme de 1955 estrelado pelo galã James Dean. A poesia única de Luiz Melodia aparece em cada verso de “Juventude Transviada”, um samba dolente que conversa com a tradição e a modernidade.

“Codinome Beija-Flor” (balada, 1985) – Cazuza, Ezequiel Neves e Reinaldo Arias
Ao lado de Cazuza, considerado o “Rei do baixo Leblon”, Luiz Melodia era visto com frequência na badalada noite do Rio de Janeiro. A capacidade como cantor rendeu um elogio inédito de Lucinha Araújo, mãe de Cazuza (1958-1990), que considerou o registro de Melodia para “Codinome Beija-Flor” melhor do que a do próprio rebento. “Ele se apropriava das canções”, garante Toninho Vaz, autor da biografia “Meu Nome É Ébano: A Vida e a Obra de Luiz Melodia”, lançada em 2020. Cazuza compôs os versos de “Codinome Beija-Flor” deitado em uma cama de hospital, numa das internações para tratar a Aids que o levou aos 32 anos, enquanto observava beija-flores na janela. Depois, a letra recebeu acréscimos do amigo Ezequiel Neves e de Reinaldo Arias, até ser incluída em “Exagerado”.

“Abundantemente Morte” (blues, 1973) – Luiz Melodia
Wally Salomão compara a poesia de Luiz Melodia, com suas saídas inesperadas e soluções cheias de quebras e elipses, à própria geografia das favelas cariocas, onde o “Negro Gato” foi nascido e criado. “Abundantemente Morte”, lançada no álbum de estreia do compositor, certamente se integra a esse conceito. Já o título se vale de palavras aparentemente distantes, mas que se atraem feito ímã pela sonoridade. A morte, que seria a ausência de tudo, é posta lado a lado, ou frente a frente, com aquilo que ocupa tanto espaço a ponto de explodir, vazar, transcender. Por isso, ao final da faixa, Luiz Melodia decreta: “Ninguém morreu”.

“Vale Quanto Pesa” (MPB, 1973) – Luiz Melodia
Pedro Luís gravou, em 2019, o tributo “Vale Quanto Pesa: Pérolas de Luiz Melodia”. A escolha pelo título se ancorou no mesmo tipo de encantamento com o sentido dado por Melodia às palavras. A exemplo do clássico romance “A Insustentável Leveza do Ser” (1984), do tcheco Milan Kundera, Pedro Luís percebeu ali a contradição buscada por Melodia em seu fazer artístico. “Essa música une a leveza ao peso. O peso das melodias ‘funkeadas’, meio reggae, e, ao mesmo tempo, essa leveza das pipas, ventos e cores, essa luminosidade que aparece no discurso dele”, constata o cantor e compositor carioca.

“Fadas” (tango, 1978) – Luiz Melodia
Jards Macalé, que escreveu “Negra Melodia” pensando no amigo, chama atenção para dois aspectos essenciais da obra de Luiz Melodia: as divisões do violão e a batida peculiar. “Ele fala que a mão direita do Luiz era uma valsa e um carnaval, destaca esse lado imprevisível, de a gente ficar sem saber para onde aquilo vai”, relata Toninho Vaz, autor da biografia “Meu Nome É Ébano: A Vida e a Obra de Luiz Melodia”, de 2020, e cita como exemplo a canção “Fadas”, um tango estilizado de Melodia, que fecha o LP “Mico de Circo” (1978) e foi regravada por Elza Soares. “É uma música que começa com ‘devo de ir’, onde já se viu isso? Melodia era um artista extremamente original”, enaltece.

“Farrapo Humano” (rock, 1973) – Luiz Melodia
Outro título da filmografia clássica norte-americana inspirou Luiz Melodia, que, no disco de estreia, em 1973, gravou “Farrapo Humano”, um rock agressivo, acelerado, mas cheio de batidas e dos suingues típicos do compositor. O filme de mesmo nome foi dirigido em 1945 por Billy Wilder, com Ray Milland e Jane Wyman nos papeis principais, e retrata o drama do alcoolismo de um escritor que enfrenta um bloqueio criativo. A letra de Luiz Melodia também se quebra e se fragmenta como um “caco de telha” e um “caco de vidro”, e foi regravada por Cássia Eller e Jards Macalé, ambos admiradores e amigos do compositor.

“Magrelinha” (MPB, 1973) – Luiz Melodia
Na capa do disco “Vale Quanto Pesa: Pérolas de Luiz Melodia”, Pedro Luís aparece cercado por pipas das mais variadas cores e escorado em uma bicicleta, chamada em alguns lugares do Brasil de “magrela”, algo que pode ser uma referência enviesada a “Magrelinha”, um dos títulos mais conhecidos da obra de Luiz Melodia presente no álbum. “Magrelinha” foi lançada no disco “Pérola Negra”, de 1973, e logo se destacou por seu conteúdo contraditório, entre a esperança e a dura realidade. “O pôr-do-sol/ Vai renovar, brilhar de novo o seu sorriso/ E libertar/ Da areia preta e do arco-íris cor de sangue…”.

“A Voz do Morro” (samba, 1955) – Zé Kéti
Neto do flautista e pianista João Dionísio Santana, o primeiro instrumento que Zé Kéti tocou foi uma flautinha dada por sua mãe. Dali para as reuniões na casa do avô na companhia de Pixinguinha, Cândido das Neves, o Índio, e outros, o menino que era quieto foi se interessando cada vez mais pela música e compôs um choro para o qual deu o nome de “Remelexo”. Então em 1955, ele viu estourar na boca do povo o seu primeiro sucesso: “A Voz do Morro”, samba que exaltava o próprio como porta-estandarte da favela. Gravada por Jorge Goulart com arranjo do maestro Radamés Gnatalli, a música fez parte da trilha sonora do filme “Rio 40 Graus”, marco do cinema nacional dirigido por Nelson Pereira dos Santos, e ganhou uma versão de Luiz Melodia em 1980.

Publicado originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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