“Uma cega labareda me guia
para onde a poesia em pane me chamusca
…
Vou onde poesia e fogo se amalgamam.
Sou volátil, diáfano, evasivo.
…
Escapo que nem dorso de golfinho
que deixa a mão humana abanando” Wally Salomão
A rua deveria dar passagem em direção a um suntuoso prédio localizado na parte mais pobre do vilarejo. A razão de ter-se erguido ali era de conhecimento público, inclusive imprensa e polícia, mas forças políticas impediam a divulgação do caso e consequentes penitências aos envolvidos. Agora, no entanto, um incêndio alastrava-se, tendo se iniciado na parte mais elevada da construção, e já se estendia até as bases. Centenas de microfones, câmeras, fios e aparelhos eletrônicos variados, de celulares a laptop´s, aglomeravam-se até os limites da barricada ali improvisada como impedimento à aproximação do fogo. Do outro lado bombeiros esforçavam-se para pôr fim à farra das chamas e decretar o império da fumaça sobre a outrora prova de soberania da inteligência e eficácia humana pautada na engenheira e conhecimentos arquitetônicos, estes últimos despidos de qualquer senso do bom gosto.
Roendo as unhas, o prefeito enfim aceitou o convite dos ávidos entrevistadores, submetendo-se a prestar esclarecimentos à ensandecida população, a se expressar de maneira parecida a animais confrontados em seu território. Tal comportamento, aliás, muitíssimo raro e particular naquela gente, acendeu ainda mais a dúvida sobre as causas do incêndio. Uma gente a princípio pacata, da qual jamais se teve notícia sobre o reclame de qualquer situação, sobretudo quando contemplada com quilo de arroz e saco de feijão, promessa cumprida e feita prioritariamente em épocas de eleição. Todo o mistério findaria com a palavra do excelentíssimo e magnânimo, como se lhe referiam os assessores, mandatário máximo da cidade; o prefeito disse: “É uma vida louca vida esta, pois se num dia tudo transcorre às mil maravilhas, noutro assombra-nos a catástrofe!”.
E recolheu-se ao carro, uma limusine preta, sem mais explicações, não obstante o apelo dos microfones e o chilique da população. Embora a noite torta dificultasse a pegar no sono aos antigos moradores da construção, agora relegados a um mequetrefe quartinho dos fundos na sede da prefeitura, onde a obrigatoriedade de acatar ordens os manteve de bico calado, pernas encolhidas, joelhos e braços dobrados; a ilusão da casa os mantinha inquietos, ou seja, lembranças, recordações, tempos idos farfalhavam nos tímpanos como pássaros em revoada ao lançaram-se do alto de árvores e, remexendo nos galhos, sacudirem as folhas de outono. Uma oração sussurrada, impossível de se depreender até aquele momento em qual idioma a recitavam, começou mansamente a penetrar os espaços brancos do lugar, como pequenas rachaduras na parede decorrentes da infiltração de água.
Um arguto diplomata, encostando o ouvido à porta para melhor perceber o som, vindo de fora, logo desvendou o enigma. Tratava-se de uma oração africana, misturada a récitas portuguesas e indígenas, nada mais peculiar no tangente à religiosidade brasileira. A figura dona da voz a propagar os versos tinha um pernicioso apelido, “Freguês da Meia-Noite”, por conta da assiduidade a se locomover neste horário, em cima de pernas trôpegas e cambaleantes, a um lendário ponto de prostituição e comércio de drogas do vilarejo. Somente a entonação da voz, munida de uma agudez incomum para tipos masculinos, fora suficiente para fornecer as provas ao diplomata, a respeito de quem afinal começara sussurrando e a esta altura berrava pronomes ofensivos e impropérios, tendo como alvo o prefeito. Ao final de cada desfile de palavrões, arrematava: “Isso não vai ficar assim!”, e a estridência vinda da garganta acentuava-se ao limite.
O mais assustador da situação, porém, ao menos do ponto de vista do diplomata, advinha do fato de nenhum interventor ter se posto entre o tresloucado sujeito e a prefeitura. Por via, talvez, das tenebrosas e específicas circunstâncias, ou mesmo do horário, pois já passava das três da manhã, e até os responsáveis por guardarem os castelos acabam cedendo às tentações de Morfeu. Certo era a ausência de vítimas no acidente. Em contraposição às dúvidas sobre a autoria. Teria sido um incêndio premeditado? Por quem? E porque afinal o “Freguês” se desesperava, se ele nem ao menos era morador da falecida construção, tendo sempre preferido o ruído e odor seco e morno das ruas barulhentas e cinzas? A falta de vítimas explicava-se. No momento da invasão das chamas nenhuma alma viva habitava o interior do local. O que obedecia à normalidade do horário de trabalho de um vilarejo acostumado à dignificante prática, onde até os mais ricos a reverenciavam, com exceção honrosa, claro, aos ocupantes de cargos políticos, não apenas ricos, mas poderosos. As crianças e os bebês cumpriam tarefadas próprias à idade em creches, escolas e orfanatos, pois há muito não se delega aos progenitores educativas lições.
Ouviu-se então um estalido. Erguendo os olhos até as embaçadas janelas, em virtude da névoa a atacar o interstício das madrugadas naquela região; o diplomata distinguiu a sombra de um homem de porte elevado e robusto, a apontar uma espingarda metálica contra a boca do outro. Este não tinha saída, e era obrigado a dar beijos de imã na ponta do cano largo. O dono do objeto assassino o mandou esticar os maxilares até a altura de seu polegar estendido, e a resposta humilde apareceu covardemente: “Não consigo”. O diplomata sentiu um suor escorrer lânguido e frio por todo o corpo, e uma espécie de azia amarela invadir a barriga mole. Tremia das pernas até a calvície, e os demais habitantes do quartinho só não se mexiam por costume ao medo e à subserviência. Nesse instante o próprio suor lhe cegava os olhos, incapazes de refletir imagens. Pois sentiu calafrios ao escutar um gemido, seguido por esta frase leviana e devastadora: “Fico Louco!”.
Atemorizado e considerando-se cercado por todos os lados, o diplomata tentava se encolher a ponto de conseguir entrar em si, e desaparecer, carregando a inevitável culpa de perceber-se testemunha de um tempo funesto e acachapante. Não sabia ele que, somente uma légua acima de sua presença, ecoava o “Samba do BlackBerry”, e numa Tupi Fusão todo mundo o tempo todo cantava o amor. Assim, Ney Matogrosso aparecera, qual um astronauta lírico, a bordo de uma nave flutuante declamava o poema da existência e bradava liberdade.
Esteja atento aos sinais, anotou, por fim, o incendiário.
Raphael Vidigal
8 Comentários
Showzão! Inovador e transgressor como só Ney sabe ser, vi na estréia aqui em SP e quando voltar em Agosto, estarei lá de novo!
amo o Ney, Rapha!!!!!!!! Obrigado Bjoooo GN*
Muito bacana. Estou ouvindo e me acabando com esse disco agora….
“À Flor Da Pele” – Ney Matogrosso & Raphael Rabello
Show! Show! show!!!
Ney é genial acima do bem e do mal. Artista ÚNICO! Homem digno que apenas eleva nossa arte ao altar do canto em oração pura e profana, em perfeita sintonia. Ney lava minha alma com sua garra, seu canto doce e seu canto de guerra! É homem? É pássaro? É tudo misturado, pois retrata a dignidade na plenitude da arte em seu sentido mais sublime. Todos os seus shows são lindos e lotam por toda parte. O motivo é a verdade que esse grande cantor e performer carrega na alma! Ney entra no melhor do cosmos! E não cabe em lugar comum. Seus espetáculos são para multidões de criaturas ávidas por liberdade em um mundo cada vez mais limitado ao pequeno, ao menor. Salve Ney Matogrosso!
Ney mostra que quer dialogar com novo público e como sempre foi um artista pretensioso, quer dar sua parcela de contribuição nesse universo de idéias que sempre fizeram parte da sua obra e compõem seu novo show. Seja debatendo política, o que sempre fez, seja incorporando elementos musicais de uma nova geração em sua identidade, Ney enriquece seu personagem artístico, que está acima do seu espetáculo, que na verdade é o que sustenta o seu espetáculo, explicitado em uma apresentação que traz sempre um conceito por trás. Afinal, para continuar saindo de casa aos 71 anos de idade, não bastam motivações simplórias, isso é para os velhos de espírito.
Muito bom artigo Raphael Vidigal, Parabéns!
Esse Ney supera todas as expectativas. Muito bom!!!
Muito legal.