Entrevista: Zélia Duncan

“Quando estou longe
Quero ficar perto
Quando estou perto
Quero ficar dentro
Quando estou dentro
Quero ficar mudo
Quando estou mudo
Quero dizer tudo” Itamar Assumpção

Zelia-Duncan.jpg

Poucos conhecem a face sádica, malévola e agressiva de Zélia Duncan, retratada na música ‘Zélia Mãe Joana’, em frases como “Eu corto suas asinhas/te expulso do meu paraíso/eu te cozinho num tacho/tempero com molho de aranha/te quebro as pernas e braço/transformo sua farsa em drama/te faço virar bagaço/chafurdo você na lama”.

Escritos numa folha de calendário, com o crivo enérgico e irrequieto do olho atávico de Itamar Assumpção (1949-2003), compositor que remodelou os vértices da música popular brasileira através de movimento denominado “Vanguarda Paulista”, os versos foram entregues à intérprete pelas mãos do próprio autor, como uma homenagem e forma de “assustar” as pessoas.

“Foi uma brincadeira dele comigo, rimos à beça na ocasião. Ele estava indo embora desse planeta, e tinha um desejo de me proteger. Por isso me deixou a música como arma e escudo”. Zélia Duncan prossegue no assunto, e avisa que Itamar, morto em decorrência de um câncer, denota, com esta canção, que “a melhor defesa é o ataque”.

NEGO DITO
Mas Zélia não é assim, como faz parecer a letra. Ela mesma se encarregou de avisar à secretária, evangélica, que tudo não passa de um “jeito lírico e maluco de dizer coisas bonitas”, vertente preferida de Itamar Assumpção, que embora resumido para o grande público sob o signo de “maldito”, deixou prolífica e contundente obra a esclarecer o viés limitante do carimbo. ‘Tudo Esclarecido – Zélia Duncan canta Itamar Assumpção’, é o nome do disco.

“Esse carimbo de ‘maldito’ é uma sacanagem com o cara, que não dá conta do tamanho da obra. Não se trata apenas de injustiça, mas decorre principalmente de desconhecimento. Há todo um lado experimental e complexo muito amplo”, avisa Zélia, que não esconde o desejo de fazer chegar ao maior número de pessoas possível as canções do “Nego Dito”, apelido pelo qual o cantor ficou conhecido após o sucesso da cantiga de igual nome. “A nossa abordagem é totalmente pop. E o Itamar, mesmo sob a cortina da revolução, é um cara extremamente popular”.

CONVIDADOS
As influências do homenageado não deixam mentir. Ataulfo Alves, Naná Vasconcelos, Hermeto Pascoal. Clássico e moderno transigindo juntos. Na mesma corrente, Zélia nadou na direção que trouxe para o disco as participações de Ney Matogrosso e Martinho da Vila. “Foi tudo ideia minha. O Ney é um artista muito livre. Ele próprio admitiu que a música da qual participa, ‘Isso Não Vai Ficar Assim’, é a cara dele, e já a colocou no roteiro de seus próximos shows”.

Martinho da Vila concede o privilégio da companhia na inédita “É de Estarrecer”, que assim como outras cinco, jamais registradas em disco, foram entregues à  cantora por Itamar Assumpção, a principal parceira Alice Ruiz, que assina em conjunto faixas como “Quem Mandou” e “Tudo Esclarecido”, e Anelis, cantora e filha do compositor. “Quis convidar gente acima de qualquer suspeita, para dar consistência ao trabalho, ‘engrossar o caldo’. Acredito que acertei nos nomes. Ambos ficaram muito felizes e satisfeitos durante as gravações”.

30 ANOS
Lançado pela gravadora Warner, o álbum encerra a tríade de comemorações dos 30 anos de carreira da intérprete. Os outros são “Pelo Sabor do Gesto” e o espetáculo “TôTaTiando”, em celebração a Luiz Tatit, ativista do grupo Rumo, já programado para sair em CD e DVD no ano que vem. De acordo com a entrevistada, todos os projetos se encontraram. Ela já vinha cantando, no primeiro trabalho das festividades, canções dos dois autores, como “Duas Namoradas”, de Itamar, e “Felicidade”, de Luiz Tatit.

Sobre a experiência cênica vivida na peça “TôTaTiando”, em que mistura música e dramaturgia, diz: “No universo do teatro estou autorizada a não controlar esse tipo de emoção diante do público. Não conseguiria se não fosse verdadeiro, até porque não tenho essa técnica”, referindo-se a momento em que interpreta a música “Dodói”, de Itamar Assumpção e Luiz Tatit, e tanto leva quanto vai, literalmente, às lágrimas.

CHOQUE
Zélia morava em Brasília, e ainda não havia adotado o nome artístico com o qual se tornaria conhecida de norte a sul do Brasil. O irmão lhe mostrou um disco, e então abriram-se as portas que a fizeram perceber que “as mesmas palavras de sempre poderiam ser usadas de modo diferente”. “Acredito que para todo mundo que escuta Itamar Assumpção pela primeira vez é um choque. Porque ele muda sua vida. É muito original e nos deixa sempre com uma pulga atrás da orelha”.

Sem conseguir se separar desse repertório ao longo de toda a carreira (a cantora havia registrado, anteriormente, cerca de 11 canções de Itamar), Zélia dividia o gosto pelo inusitado com outra colega de Brasília, com quem matava aulas, e se transformou, assim como os mestres, em sinônimo de modernidade na música brasileira. “A Cássia (Eller) também era louca por esses caras. Gravou, principalmente nos primeiros discos, todos eles, de Itamar Assumpção a Arrigo Barnabé, passando por Hermelino Neder”.

INTELIGÊNCIA
Arrigo Barnabé, que misturou história em quadrinhos com música erudita atonal, e no momento dedica show a cantar, com bravura, as músicas raivosas de Lupicínio Rodrigues, intitulado “Caixa de Ódio”, é quem assina texto sobre o recente trabalho da intérprete de ‘Catedral’ e outros sucessos, onde define: “Mais do que uma homenagem, este é um trabalho de afeição, de amor”.

Lisonjeada com os elogios, Zélia Duncan afirma: “Escolhi as músicas seguindo a intuição. Deixei de fora as mais batidas. Quis trazer o frescor da novidade, caso contrário não teria a essência do Itamar”. A palavra a melhor defini-lo? A cantora é exata: “inteligência”. Fim de papo.

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Raphael Vidigal

Publicado no jornal “Hoje em Dia” em 30/12/2012.

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8 Comentários

  • Parabéns Raphael Vidigal, entrevista 10! Conheci mais dessa grande cantora que muito admiro. Muuuuuuito bom!!!! beijos.

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  • Zélia tem buscado projetos que só contribuem para o seu crescimento como intérprete e valorizado sua bela voz de contralto. Itamar e Tatit, artistas que tive a felicidade de conhecer logo quando despontaram no cenário da música vanguarda paulistana, são essenciais no trabalho de Miss Duncan e também no meu. Fiz alguns show nos bares aqui de Beagá cantando esses caras em meados dos anos 80 e até hoje sinto a diferença que eles fizeram e fazem no meu trabalho de cantor de samba ou de qualquer outro estilo que eu venha a cantar… Fico feliz coma as sacadas da Zélia e com pesar de ter perdido o show Tô Tateando….mas o bom é que esses bons trabalhos, hoje, acabam sendo registrados em cd/dvd. Vamos aguradar….Obrigado sempre, Vidigal!

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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