Mulheres Criando – Vozes no deserto: Quebrando o silêncio da composição feminina

“Ô mãe, me explica, me ensina
Me diz, o que é feminina?
Não é no cabelo ou no dengo ou no olhar
É ser menina por todo lugar
Ô mãe, então me ilumina
Me diz, como é que termina?
Termina na hora de recomeçar
Dobra uma esquina, no mesmo lugar” Joyce

Coletivo Mulheres Criando em BH

A recuperação da identidade feminina na composição musical brasileira foi um caminho árduo: os acessos são sempre muito difíceis devido à documentação histórica concentrar-se nos grandes centros do Brasil, sem contar com a amplitude do assunto.

Portanto, assumo, desde o primeiro instante, que o caminho aqui a ser trilhado é do eixo da afetividade. Contento-me, como amante da música, a fazer uma busca afetiva de algumas compositoras que fizeram história na MPB e abriram caminho para tantas outras.

As dificuldades enfrentadas pelas mulheres nos diversos campos da expressão artística são inúmeras; portanto, faz-se necessário um movimento de resistência e luta como o coletivo Mulheres Criando, que surgiu no ano de 2016, na cidade de Belo Horizonte, idealizado por quatro mulheres do cenário musical da cidade.

Amorina, Bia Nogueira, Deh Mussulini e Flávia Ellen criaram o movimento Mulheres Criando[1] que promove a Mostra Mulheres Criando e o Sonora – Ciclo Internacional de Compositoras[2].  O objetivo da iniciativa é valorizar e promover o espaço da mulher compositora no cenário musical nos níveis local, nacional e internacional.

Mulheres Criando é o devir da composição feminina – quando tudo estava parado, surge a mudança. No campo filosófico, o devir significa que nada é permanente no mundo, exceto as transformações e mudanças. A potência do feminino chega forte como para dizer: viemos para ficar.

O devir feminino, na esfera do que vem acontecendo na cena musical de Belo Horizonte, abriu-se para vários estados do Brasil e alguns países do mundo com o Sonora – Ciclo Internacional de Compositoras. A intensidade e a potência do coletivo me fazem lembrar Deleuze e sua concepção do devir – são múltiplos corpos, movimentos, afetos, simbioses na diversidade.

Daqui em diante, farei uma breve busca afetiva das compositoras a partir da minha memória musical e referências históricas da MPB. Retornarei às Alterosas, pois é preciso falar das quatro mulheres precursoras e criadoras do movimento.

Na memória, em primeiro lugar, quando penso na luta das compositoras brasileiras, me vem Chiquinha Gonzaga a anunciar:

“Ó abre alas
Que eu quero passar
Ó abre alas
Que eu quero passar
Eu sou da Lira
Não posso negar”

Chiquinha Gonzaga foi o prelúdio da composição feminina no Brasil, o maior vulto na cena da música autoral feminina, mas a luta foi intensa e difícil. Chiquinha da Lira abriu vários caminhos através de suas atitudes feministas que causaram grandes embaraços à época.

Já na década de 50 surgiu Maysa Monjardim com suas letras marcadas pela melancolia. Seu ingresso na música foi em 1956 quando lançou o disco Convite para ouvir Maysa. Morre aos 40 anos.

Ainda na década de 50 estrelou Dolores Duran, que morre aos 29 anos, deixando seu legado na composição feminina com os grandes sucessos A noite do meu bem e Estrada do Sol.

Na década de 60, houve a consagração da Bossa Nova, da Tropicália, dos grandes festivais, em plena ditadura, onde frutificaram várias canções de protesto e o surgimento de grandes compositoras que deixaram sua marca. Joyce apareceu de mansinho, gravou seu primeiro LP em 1968, ano do AI5, o mais duro golpe da ditadura. Anos mais tarde grava Feminina em 1980 – já no período da anistia, foi um marco em sua carreira.

“Ô mãe, me explica, me ensina
me diz, o que é feminina?
Não é no cabelo ou no dengo ou no olhar
é ser menina por todo lugar
Ô mãe, então me ilumina
me diz, como é que termina?
Termina na hora de recomeçar
dobra uma esquina, no mesmo lugar.”

No final da década de 60 surge Lee, a Rita, e seu hibridismo musical marca uma época, pois suas canções lançam rebeldias nas cabeças femininas. Dona de um estilo único de cantar, Rita Lee inaugura um novo tempo para a canção feminina no Brasil. Suas canções abordam essas temáticas com muita irreverência.

Sua carreira começa com a banda Os Mutantes, onde ficou de 1966 a 1972, quando foi expulsa, com a desculpa de que ela não tinha o que a banda precisava: a preciosidade que o rock progressivo pedia.

Na verdade, após sua saída, Os Mutantes nunca conseguiram atingir o grande público, Rita Lee era a menina dos olhos da banda. Em 1975 lança Ovelha negra do álbum – Fruto Proibido – o disco foi uma explosão de sucesso.

“Levava uma vida sossegada
Gostava de sombra e água fresca
Meu Deus quanto tempo eu passei
Sem saber
Foi quando meu pai me disse filha
Você é a ovelha negra da família
Agora é hora de você assumir
E sumir
Baby baby”

No final da década de 70 surge uma estrela de brilho singular, uma das mais preciosas pérolas do cancioneiro popular. Preta, nordestina, Catarina Maria de França Carneiro, Cátia de França, seu nome artístico.

Sua música tem forte interferência literária como nota-se no seu primeiro disco: 20 palavras ao redor do sol, de 1979. Cátia de França não alcançou a notoriedade merecida. Suas canções não chegam ao grande  público que muito perde por não conhecer essa grande mulher do Brasil e suas composições que fascinam aos ouvidos mais delicados.

“a tua sede é calma
calma de alma verde
a tua fome é fonte de onde nasce o homem
espalhas estilhaços de amor”

(Estilhaços, do disco de mesmo nome de 1980)

Parece que a década de 70 não acaba. Preciso falar aqui de Angela Rô Rô, e quem nunca ouviu falar? Pura irreverência nos palcos da vida e grandes composições. Cito aqui uma composição que considero das mais belas canções de amor já feitas: Gota de sangue, gravada no disco de Maria Bethânia, Mel, 1979.

“Não tire da minha mão esse copo
Não pense em mim quando eu calo de dor
Olha meus olhos repletos de ânsia e de amor.”

Sigo a trilha da minha paixão pelas autoras brasileiras para falar de uma compositora que marca um novo tempo na MPB: Marina Lima , que iniciou sua carreira de sucesso aos 22 anos quando teve sua canção Meu doce amor gravada por Gal Costa.

Em 1979 lança seu primeiro disco: Simples como Fogo. Já na década seguinte explode em 1984 com o álbum Fullgás, obtendo sucesso de público e crítica. Seu grande parceiro de composições é o próprio irmão, Antônio Cícero, poeta, filósofo e compositor.

“Meu mundo você é quem faz
Música, letra e dança
Tudo em você é fullgás
Tudo você é quem lança
Lança mais e mais
Só vou te contar um segredo
Não nada
Nada de mal nos alcança
Pois tendo você meu brinquedo
Nada machuca, nem cansa.”

Agora chega ao pedaço, já na década de 90, Fernanda Abreu, que começou sua carreira na Blitz, banda de sucesso dos anos 80, onde permaneceu como backing vocal de 1982 a 1986. No primeiro ano da década seguinte inicia carreira solo.

Foi pioneira da música Pop no Brasil, a partir de misturas dançantes e coreografias, inserindo samplers em seus Hits.

Encontrou muita resistência, pois na época o rock nacional dominava as paradas de sucesso na TV e nas rádios. Apesar disso nada contra a maré e ganha reconhecimento como a mãe do pop brasileiro pela imprensa especializada.

Lança então SLA Radical Dance Disco Club em 1990, mas o reboliço maior foi a gravação de Rio 40 graus em 1992, parceria com Fausto Fawcett e Laufer, quando vem a descortinar um Rio não tão atraente. A canção foi um marco na história da música brasileira ao trazer o Hip Hop e o Funk para o cenário musical nacional, e levar a periferia para a grande mídia.

“O rio é uma cidade de cidades misturadas
O rio é uma cidade de cidades camufladas
Com governos misturados, camuflados, paralelos
Sorrateiros ocultando comandos.”

E sigo comemorando o que chamo de criação – citei no breve histórico: nove compositoras que fazem parte da minha memória afetiva musical e também do trabalho de busca histórica da vida e obra dessas mulheres.

No bojo dos anos 70, 80 e 90 não podemos nos esquecer das grandes compositoras: Fátima Guedes, Ana Carolina, Marisa Monte, Adriana Calcanhotto, Dulce Quental, Paula Toller, Zélia Duncan, e as de agora ou quase agora: Maria Gadú, Tulipa Ruiz, Tiê, Céu, Karina Bhur e tantas outras que merecem ser lembradas.

Lembro-me de muitas outras, mas o intento da escrita é a busca afetiva da música e o que ela representa no cotidiano das gentes, pois a música é a forma de arte que mais se aproxima das pessoas e não podemos deixar as criações das mulheres compositoras presas no esquecimento.

Na sequência musical persigo a criação, pois é nela que está o crescente fazer do artista que escolhe seu mundo paralelo e ali se esconde como criança e cria suas frações atemporais de arte e processos criativos que levam vida para a vida de muitas pessoas.

Vamos criar? Vamos levantar a poeira? Vamos dizer ao mundo que precisamos de espaço? Que ainda temos muito a conquistar? Assim vejo as interrogações que levaram o nascimento do Movimento Mulheres Criando, abordado alhures.

Amorina, Bia Nogueira, Deh Mussulini e Flávia Ellen, foram elas que movimentaram e movimentam a cena musical feminina da capital mineira, das Alterosas.

Em processo de expansão fizeram chegar às principais cidades do Brasil a ideia de que tudo está em movimento e nas palavras da compositora e cantora Deh Mussulini: “A Revolução virá pelo Ventre”. Como insígnia do movimento, a frase inspiradora criou raízes no imaginário feminino e fez-se fecunda espalhando-se pelo Brasil e pelo mundo com o Sonora – Ciclo Internacional de Compositoras.

Cada uma no seu estilo de compor e de cantar inaugurou o que denomino ato revolucionário nestas terras das Minas Gerais e que não cessará, pois as quatro mulheres são persistentes e deixam rastros de luta e resistência por onde passam, ao buscarem no coletivo a força e a determinação que a individualidade sufoca.

Daqui em diante vou apresentar um pouco de cada uma na perspectiva musical afetiva, pois como Dom Quixote falava: “quando o coração transborda, a língua fala”. Não me deterei em academicismos, mas no conceito musical que tenho comigo – a música é a transformação das palavras em pássaros que voam nos espaços diversos com a intenção de encontrar ouvidos prenhes de afetos.

Amorina, brasileira, compositora e cantora fortemente influenciada pelo folk, rock, pop, blues e uma poética visceral que marca sua composição. Timbre vocal peculiar e harmônico, parece flutuar ao entoar suas canções. Em Solidão e Tempo, a compositora encontra-se com a poesia do cotidiano.

“O dia passa nas dez horas
Que só vejo o sol descer lá fora
Pro pensamento mais 3 horas
Vou em pé, transporto solidão e tempo,”

Já em Luzes rápidas: o encontro é com a inquietação, composição visceral e pungente, carregada de sentido do fazer artístico no picadeiro do mundo.

“A lua vaga a iluminar, perdi o sono e a solução/Me faltam pés ou falta chão?/Pra cada dia que eu passar mudando as contas de lugar/Na álgebra da minha escravidão/E o que faz incendiar, mudando as coisas de lugar/Gritando as notas contra a razão?/Será que passa a iluminar o picadeiro onde eu pisar/Com as luzes rápidas da minha profissão?”

Bia Nogueira, brasileira, compositora, cantora e atriz, por sua vez, leva para a sua composição denúncias de cunho social, não se afastando da verve poética, literária e as nuances performáticas que marcam seus shows.  Em suas músicas, apresentadas no palco, encontramos a aplicação de samplers, influência musical do pop rock internacional dos anos 80 e 90, introduzida por várias cantoras e compositoras no Brasil.

Sua música passa pelo percurso histórico, e é possível notar a forte influência de Clara Nunes em seu fazer artístico. São brasilidades diversas em Bia Nogueira, influências estas que constroem sua personalidade artística, seu timbre vocal generoso e forte que tornam suas canções ainda mais potentes e recriadoras de vidas.

“Dandara uma mulher
que era de Oba, de Elekô
Dandara era Guerreira
independente e sem senhor
Por todo povo preto
Dandara é meu espelho
Minha guia, inspiração
Dandara”

Em Filhos da Seca, denúncia clara de um país desigual, a compositora dá voz a uma mulher que chora a dor da fome, da barriga vazia, do amor rude, da partida, do coração rachado como a terra, uma canção forte e dilacerante. Faz minguar e renascer a esperança, tudo ao mesmo tempo.

“Nem é cedo demais, pra saber que a vida é desgraçada aqui/Meu filho, amor tem dessas coisas rudes/Tenho cá um coração rachado da terra que vingamos/a fome dói na alma, a fome é os olhos da morte .”

Deh Mussulini, brasileira, compositora, cantora, violonista, vem trazer à tona uma composição peculiar, uma música que vibra nos recônditos da alma. Em entrevista anterior a compositora me disse: “fazer música que não se desvincule do feminino/feminismo e da espiritualidade. Meu desejo: pudera minha música curar as dores da alma”. Senhora de um timbre vocal peculiar e ímpar, intensidade e delicadeza dão o tom em seu estilo de cantar – vento quase forte, mas sempre sereno.

Em Varanda Aberta seu primeiro disco, Deh Mussulini, diz: um apanhado de músicas que fiz sobre o universo feminino num viés mais existencial: o filho no ventre, campos santos de Dona Música, a paixão e o envelhecimento em Fé Menina.

Padronizar Varanda Aberta em um estilo musical é prender a mística da música que cura, alivia, sensibiliza e criado-ra de mudança.

“Grita a mudança que a libertação se aproxima/Escondida pros olhos não vê/ Que aí o coração não sente”

Flávia Ellen, brasileira, compositora, cantora, traz a marca do pop em suas composições cheirosas de brasilidade. Com um timbre vocal forte e delicado, seu ingresso na música foi no ano de 2007.  Desde então participa de festivais, programas de rádio e televisão.

Suas canções têm forte influência da MPB, de um pop marcante e do jazz. Lançou um EP com cinco músicas de sua autoria no ano de 2015. Nele, Flávia Ellen presenteia o público com canções faceiras, cheias de vitalidade e charme musicais.

“Deixe comigo os meus ‘ais’
‘Ais’ da paixão que me inunda
Inunda de lágrimas da prece de amar
Por amor ao amor somente”

Em Arabesco, Flávia Ellen deixa sua marca criativa e envolvente numa composição que diz aos corações apaixonados sobre o desassossego de amar, frente à insistência da alma inclinada ao amor.

“Não esqueça o ser dos meus olhos
Olhos tão seus que lhe entrego
Entrego o desassossego de ser sua e de mais ninguém.”

Em Quase sem vergonha, a faceirice da musicalidade da cantora se revela em um samba-rock gostoso de ouvir, outra faceta das brasilidades que concebem o universo musical de Flávia Ellen.

“Ah mas se você me olha dizendo que rola e me dá bola
Pego a viola e canto um samba só pra te cantar
E te pego de jeito, ao pé do ouvido, com todo respeito
E delicadeza, digo com certeza, você vai gostar.”

Vida longa ao Movimento Mulheres Criando. Desertos são férteis, deles nascem vozes que produzem ecos de vida, pois é no deserto que a água faz a vida brotar em oásis alvissareiros.

Iniciativa reúne 4 compositoras mineiras

Elisa de Jesus, poeta, escritora, natural de Ubá-MG, terra cantada nas canções de seu filho mais ilustre, Ary Barroso – Convidada especial do blog Esquina Musical

Fotos: Cristiano Nogueira

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Mário de. Música, doce música. 2.ed. São Paulo: Martins Editora – INL, 1976.

BERNARDES, Maria Thereza Caiuby Crescenti. Mulheres de ontem? Rio de Janeiro – século XIX. São Paulo: T.A. Queiroz Editor, 1988.

DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Rio de Janeiro: Instituto Cravo Albin. Disponível em: <http://www.dicionariompb.com.br>.

*Serviços

Coletivo Mulheres Criando

https://www.facebook.com/mulherescriando/?fref=ts

Sonora – Ciclo Internacional de Compositoras

https://www.facebook.com/sonora.compositoras/?fref=ts

Amorina

http://www.amorinaoficial.com/

https://www.facebook.com/amorinakarine/

Bia Nogueira

https://www.facebook.com/bianogueirabh/?fref=ts

Deh Mussulini

http://www.dehmussulini.com

https://soundcloud.com/dehmussulini

https://www.facebook.com/dehmussulinicantora/?fref=ts

Flávia Ellen

http://flaviaellen.com.br

https://soundcloud.com/flaviaellen

https://www.facebook.com/flaviaellen/?fref=ts

[1] O movimento Mulheres Criando surgiu a partir de uma iniciativa da musicista e compositora Deh Mussulini, no dia 01 de fevereiro de 2016, a fim de romper com o imaginário de que existem poucas mulheres criando sua própria arte. Por meio do movimento, mulheres compartilharam vídeos na internet com performances de suas próprias composições, a partir da hashtag #mulherescriando.

[2] Sonora – Ciclo Internacional de Compositoras é um movimento de compositoras de vários estados do Brasil e do mundo. Amorina, Bia Nogueira, Deh Mussulini e Flávia Ellen fazem parte desse grande ideal de mostrar ao mundo que as mulheres são compositoras, sim! E precisam ser ouvidas em suas canções que rompem preconceitos e barreiras.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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