Maria Bethânia canta ‘país negro e racista’ com ecos da ditadura

*por Raphael Vidigal

“Não vê que isto aqui é como filho nascendo? Dói. Dor é vida exacerbada. O processo dói. Vir-a-ser é uma lenta e lenta dor boa. É o espreguiçamento amplo até onde a pessoa pode se esticar. E o sangue agradece. Respiro, respiro.” Clarice Lispector

A frase te pega pela garganta. “País negro e racista” cabe melhor à bandeira verde-amarela do que o “ordem e progresso” que a estampa hoje, abolindo o princípio do lema formulado por Auguste Comte que Noel Rosa poetizou: “O amor vem por princípio/ A ordem por base/ O progresso é que deve vir por fim…”. Tergiversações à parte, a voz ainda encorpada de Maria Bethânia, aos 74 anos, segue vibrando como um metal que é despertado por um leve toque: “País negro e racista”. O que vem depois é bem pior, mais aterrador, pois nos lembra que essa inscrição, gravada com ferro em brasa no corpo dos escravos, representa a morte de uma criança negra, que Adriana Calcanhotto, autora da discursiva letra, compara a Ícaro, aquele do mito grego que morreu ao se aproximar do Sol.

Mito, no Brasil de 2021, tem a ver com estupro, corrupção, genocídio. Com a fagulha de sua voz metálica e encorpada que nos pega pela garganta, Bethânia revela nossos porões da tortura: hoje, sempre, ontem. E nesse tempo escorrido e estático as distâncias se extinguem frente à perplexidade da cantora: olhar de rapina, dedo em riste para a ferida suturada, que não cicatrizou: “Pai, afasta de mim esse cálice/ de vinho tinto de sangue…”. Para lavar todo esse sangue derramado, de corpos negros, pobres, de militantes e lavradores, gentes de mil faces, Bethânia recorre às lágrimas da vingança: “Cada ruga que eu trouxer no rosto/ cada verso triste que a dor me ensinar/ cada vez que no meu coração/ morrer uma ilusão/ há de pagar”. Com vacina, respeito, verdade e misericórdia.

A apresentação da intérprete, em sua primeira e única “live” desde o início da pandemia – essa expressão antipática que nada mais quer dizer do que “ao vivo” – começa com quatro palavras, sublinhadas por sua postura implacável: vacina, respeito, verdade e misericórdia. Bethânia comemora os 56 anos de sua estreia nos palcos com o espetáculo “Opinião”, em substituição e a convite de Nara, ao lado de Zé Kéti e João do Vale, tudo isso após ficar praticamente um ano sem realizar aquilo que a guia cotidianamente, e que ela chama de “milagre”. Articuladora de palavras, parece difícil encontrar outra que se ajuste tão bem ao que, de fato, acontece quando ela chama a voz de metal despertado a clamar por uma nação machucada e, pasmem, ainda assim com uma altivez guardada.

Há ecos da ditadura nesse país negro e racista, escravocrata, que tortura e mata aos milhares desde que o tempo por aqui passou a ser contado. Há uma luz de ribalta que se acende vermelha quando a emoção dispara. Há músicos que a acompanham com o rigor de uma orquestra. Numa ponta está um país latino, o maior e mais populoso de seu continente, sob a égide de um regime nefasto, censor, covarde e, noutra ponta, esse mesmo país, envelhecido, menos esperançoso e sonhador, aprisionado pelo fã de um ídolo sádico, que se regozija diante da própria barbaridade para a plateia de marionetes. E há Bethânia. Que o canta. E que canta. A voz atravessa o tempo com pontaria de lança, vibra como metal, conta cada ruga da manhã vindoura. Há de durar. Tem na mão a garganta.

Foto: Globoplay/Reprodução.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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