Conheça 10 músicas que unem política e Carnaval

“E quando me fartar dessas ímpias folias,
Pousarei sobre ele a forte e débil mão;
E as minhas unhas, como aquelas das harpias,
Acharão o caminho até seu coração.” Baudelaire

Hoje é Carnaval. Amanhã ainda é carnaval. Não porque esteja próxima uma Quarta-Feira de Cinzas. Nem porque virou farra o som de buzinas. Mas porque Carnaval está além de data no calendário. É a heroica alegria da bagunça e da patuscada. De se fantasiar e mascarar e perceber o desarrumado cenário belo de fantasias, máscaras e perdidas ilusões brilhantes. No carnaval, face desordeira da humanidade. Face divertida, bem resolvida, com muito alarde. Se tudo arrumado perde contato com a superfície mais fina de uma mera alegria, não deixe de brincar no carnaval e de capturar o sentido político dessa festança.

“Retrato do Velho” (marchinha, 1951) – Haroldo Lobo e Marino Pinto
O apoio popular a Getúlio Vargas se deu de tal forma que, mais tarde, na década de 1950, ele se tornou tema de duas marchinhas de Carnaval, gênero musical que mais atingia ao que se pode chamar de massa da época. A mais famosa delas, de autoria de Haroldo Lobo e Marino Pinto, foi composta em 1951 e festejava o retorno de Getúlio ao poder. Em clima panfletário os versos decretavam: “Bota o retrato do velho outra vez/ Bota no mesmo lugar/ O sorriso do velhinho/ Faz a gente trabalhar”, referindo-se, também, às leis trabalhistas que tanto conquistaram a massa, implantadas por Getúlio. O mais curioso é que Getúlio não gostou de ser chamado de velho na letra da música, e pensou em censurá-la, no entanto, o sucesso entre o povo era tanto que ele decidiu não fazer nada para impedir a sua execução.

“Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua” (marcha-rancho, 1972) – Sérgio Sampaio
Com sua loucura lúcida, como disse Lygia Fagundes Telles de Caio Fernando Abreu, Sérgio Sampaio criou uma das mais emblemáticas canções de carnaval de todos os tempos. Em meio à ditadura militar que se instaurara no Brasil, o compositor baiano, tido por muitos como “maldito”, dá uma aura lamentosa à festa popular mais famosa do país, ao entoar versos confessionais em tom melancólico, emendando logo na sequência o refrão esperançoso que garantiu o sucesso da canção: “Eu quero é botar meu bloco na rua, brincar, botar pra gemer…”. Além do conteúdo sexual abordado no refrão há também referências ao uso de drogas, tudo feito com muito deboche, misturando lamento e alegria e dando o seu aval definitivo à festa máxima brasileira: os quatro dias de Carnaval.

“Do Isopor ao Viaduto” (marchinha, 2016) – Raphael Vidigal, André Figueiredo e Ronaldo Ferreira
Dizem que o Brasil é o “país da piada pronta”, verso repetido à exaustão pelo colunista José Simão, mas há sempre gente querendo reinventá-la, especialmente na política. Márcio Lacerda, prefeito de Belo Horizonte durante oito anos ficou conhecido por suas patacoadas entre os dois mandatos. Eleito por via de uma inédita aliança entre PT e PSDB, a união entre petistas e tucanos em torno de seu nome não deu lá grandes resultados após a apuração das urnas. Entre suas declarações mais célebres afirmou que “não era babá” dos habitantes de Belo Horizonte quando um casal de idosos morreu afogado durante uma enchente na capital. Por fim, resolveu proibir a utilização de isopor e churrasqueira nas ruas no período das comemorações carnavalescas, pouco tempo depois de um viaduto desabar em BH durante a Copa do Mundo 2014.

“O Baile do Cidadão de Bem” (marchinha, 2017) – Jhê Delacroix e Helbeth Trotta
Cantora, atriz, bailarina, assistente social, artista plástica, contadora de histórias, escritora e tudo o mais que englobe a arte, a carioca Jhê Delacroix despontou como um dos destaques do Carnaval de Belo Horizonte em 2017, cidade onde se estabeleceu. Ela venceu o “Concurso de Marchinhas Mestre Jonas”, com a canção “Baile do Cidadão de Bem”, como intérprete e coautora. Detalhe: foi a primeira compositora mulher a levar o prêmio. A música premiada, que tira um sarro daqueles que foram às ruas pedir o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, é uma parceria com Helbeth Trotta. “Acho importante ter uma mulher num concurso de marchinha, acho importante ter a mulher em qualquer espaço porque não é só homem que faz música de qualidade, que faz letra de qualidade, e a gente está aí pra provar isso”, sentencia Jhê.

“Cuidado Com o Pescoço” (marchinha, 2017) – Raphael Vidigal, André Figueiredo e Ronaldo Ferreira
Composta em 2017 a marchinha “Cuidado com o pescoço” mistura duas das receitas mais tradicionais na música brasileira para chegar à sua fórmula festiva. Começando pelo recorte histórico tece ilações entre figuras que foram acusadas de traição com o homenageado que inspira o título. Recurso bastante utilizado nos sambas-enredos. Por outro lado, remete à antiga mania de escárnio presente desde os tempos do poeta satírico Gregório de Matos, conhecido como “Boca do Inferno” e representado em filme pelo também poeta Wally Salomão. A homenagem às “grandes figuras” políticas vem desde o tempo em que Getúlio Vargas ficava irritado ao ser chamado de velho na marcha que trazia o refrão “bota o retrato do velho outra vez, bota no mesmo lugar, o retrato do velhinho faz a gente trabalhar…”. Ora só, o aviso está dado!

“Retiro do Vampiro” (marchinha, 2018) – Raphael Vidigal e Ronaldo Ferreira
Após a deposição da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, a turma do vice Michel Temer, que assumiu o trono, colocou rapidamente a colocar em prática os planos econômicos que interessavam à elite que manipulou as massas para conseguir seu intento. Uma dessas pautas era a Reforma da Previdência, que abria espaço para manter privilégios e arrochar ainda mais o povo em um sistema desigual e injusto. Para emplacar a proposta, Temer contou com o apoio do apresentador Silvio Santos, a chegou a participar de seu programa no SBT. A figura vil do presidente logo foi compreendida pela população, que passou a associá-lo a um vampiro, representação que ganhou, inclusive, o sambódromo do Rio de Janeiro e também serviu de inspiração para a marchinha “Retiro do Vampiro”, composta pela dupla Raphael Vidigal e Ronaldo Ferreira para a folia.

“Santo Profano, Deusa Mulher” (marchinha, 2018) – Raphael Vidigal
Nos últimos anos, além dos bares, BH tornou-se também a capital do Carnaval. Com uma programação ampla e diversificada, a cidade passou a receber os tão tradicionais e antigos blocos carnavalescos que, ao remeter à memória, trouxeram suas próprias inovações com misturas inusitadas e, acima de tudo, festeiras. Vale fantasia, vale confete e serpentina, principalmente, vale alegria! O ressurgimento do Carnaval de BH está intrinsicamente ligado à questão política, pois partiu da ocupação do espação da chamada “Praia da Estação”, com trajes de banho pelos militantes, depois de uma proibição por parte da prefeitura, à época comanda por Márcio Lacerda, do PSB. “Santo Profano, Deusa Mulher”, de Raphael Vidigal, retoma signos dessa festa cheia de rebeldia.

“História pra Ninar Gente Grande” (samba-enredo, 2019) – Manu da Cuíca, Luiz Carlos Máximo, Deivid Domenico, Tomaz Miranda, Mama, Ronie Oliveira, Marcio Bola e Danilo Firmino
Marina Íris estava ao lado de Marielle Franco (1979-2018) durante a campanha que a elegeu à Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo PSOL, em 2016, com mais de 46 mil votos. Maria Bethânia lançou o álbum “Mangueira: A Menina dos Meus Olhos”, onde regravou o samba-enredo da Mangueira que saiu vencedor em 2019, “História pra Ninar Gente Grande”, que enaltece o legado de Marielle. O citado samba-enredo foi interpretado também por Marina Íris em uma sessão solene na Câmara dos Deputados, em Brasília, em março, um ano após a morte de Marielle. E também entrou como uma das faixas de “Voz Bandeira”, seu terceiro disco, dedicado à vereadora que ajudou a eleger, mas que ficou apenas um ano e dois meses no cargo. Além de Marielle, outras mulheres são exaltadas.

“Solta a Jararaca” (marchinha, 2019) – Alexandre Rezende, Bobô da Cuíca e Arnóbio Souza
Em março de 2016, enquanto o processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff tramitava na Câmara dos Deputados, a operação Lava Jato, em mais uma de suas ações espetaculosas e midiáticas, levou Lula para depor em uma condução coercitiva sem que o ex-presidente tivesse sequer sido previamente convocado. Mais tarde, áudios divulgados pela Vaza Jato, que recebeu provas das ilegalidades da operação, revelaram que a intenção dos procuradores da Lava Jato era prender Lula já naquele momento, antes mesmo que ele fosse julgado. Após ser liberado, Lula discursou para militantes e cunhou outra frase de impacto: “Se tentaram matar a jararaca, não bateram na cabeça. A jararaca está viva como sempre esteve”. A marchinha “Solta a Jararaca”, de Alexandre Rezende, Bobô da Cuíca e Arnóbio Souza alude a esse episódio. Interpretada por Julie Amaral, ela faturou o 2º lugar do Concurso Mestre Jonas.

“Pé na Jaca” (marchinha, 2020) – Bento Aroeira e Rubinho do Agogô
Durante a campanha eleitoral de 2018, o senador Cid Gomes, irmão de Ciro Gomes, presidenciável pelo PDT, se estranhou com apoiadores petistas e disparou: “O Lula tá preso, babaca!”. Da prisão, Lula reagiu com bom humor em uma entrevista, ao dizer: “Eu sei que estou preso, só não precisava chamar os outros de babaca”, e riu. Com a libertação do ex-presidente, o bordão se inverteu. Para completar, o documentário de Petra Costa sobre o impeachment de Dilma, “Democracia em Vertigem”, foi indicado ao Oscar. Os compositores Bento Aroeira e Rubinho do Agogô criaram a marchinha “Pé na Jaca” inspirados por essa trama. A interpretação é de Julie Amaral. A marchinha venceu o primeiro Concurso Satírico de Marchinhas de Ouro Preto, premiando-a em 2020.

Imagem: Lan/Reprodução.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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