Filme sobre Agostinho dos Santos resgata cantor que morreu tragicamente

*por Raphael Vidigal

“Só amam a música aqueles que sofrem por causa da vida.” Emil Cioran

Conhecido dos brasileiros graças a um samba de Chico Buarque e Toquinho sobre os exilados pela ditadura militar, o aeroporto de Orly, na França, foi palco de uma tragédia sem precedentes para a música popular brasileira. Quando o avião com 134 tripulantes caiu nas imediações da cidade de Paris, após um incêndio a bordo, 123 pessoas morreram. Dentre elas, estava o cantor Agostinho dos Santos, que, aos 41 anos, se preparava para voltar ao país que, décadas antes, o alçara ao estrelato internacional. A convite de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, Agostinho gravou – com João Gilberto ao violão –, “Manhã de Carnaval”, de Antônio Maria e Luiz Bonfá, para a trilha de “Orfeu Negro”, dirigido pelo francês Marcel Camus, que levou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960.

“A morte prematura dele chocou não só os fãs, mas também dezenas de cantores e cantoras que regravavam músicas de seu repertório”, afirma Ney Inácio, diretor do documentário “Agostinho”, que revisa a trajetória do cantor, atualmente em fase de edição, mas sem data oficial para estrear e com a pretensão de ser inscrito em festivais. Quando morreu, em 1973, Agostinho “andava um pouco triste, pois a carreira tinha dado uma queda que ele nunca soube explicar”, conta Inácio. “Iria para um festival na França defender o Brasil e voltar às paradas de sucesso”. Criado no bairro do Bexiga, em São Paulo, onde nasceu, Agostinho começou atuando como crooner da Orquestra de Oscar Milani, na boate Avenida Danças, e logo passou para os programas de calouros.

Ascensão. Foi o trompetista José Luís que, em 1951, arranjou para ele um contrato com a Rádio América, que rapidamente ficou pequena para o seu talento, despertando a atenção da Rádio Nacional de São Paulo e da Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro, onde se apresentou ao lado de duas estrelas do rádio: Angela Maria e Sylvia Telles, com acompanhamento da Orquestra Tabajara de Severino Araújo. No mesmo ano, em 1955, ele grava o primeiro sucesso, “Meu Benzinho”, vencedor do prêmio Roquette Pinto e do Disco de Ouro. “Agostinho foi o início, de fato, da época de ouro da voz romântica e dos arranjos bem tratados no Brasil”, defende Inácio. O êxito da participação em “Orfeu Negro”, que também levou Cannes e o Globo de Ouro, o catapultou ainda mais ao alto.

Na trilha, outro estouro na voz de Agostinho fora “A Felicidade”, clássico de Tom e Vinicius, dupla da qual já havia gravado “Eu Sei Que Vou Te Amar”, em 1959. Tudo convergiu para que, em 1962, ele fosse convocado para a histórica apresentação no Carnegie Hall, em Nova York. “O mundo não conhecia a Bossa Nova. Agostinho foi como estrela principal, mas levou Tom Jobim, João Gilberto, Vinicius de Moraes e toda a turma da Bossa Nova. A partir daí, o sucesso do movimento musical ganhou ares internacionais”, afirma Inácio. Diante de uma plateia curiosa e admirada, Agostinho cantou o seu maior sucesso, “Manhã de Carnaval”, e terminou aplaudido de pé, com cravos vermelhos atirados em sua direção. Dali, excursionou pela Europa, África e Américas, de Portugal a México.

Preconceito. Apesar de, àquela altura, ter sido considerado o principal astro do espetáculo dedicado à Bossa Nova, Agostinho não desfrutou do reconhecimento à altura, a exemplo de outros colegas negros do movimento, como Alaíde Costa e Johnny Alf. “Sofria com o preconceito, racismo? Claro! O que fez? Criou um clube para negros e negras, chamado Aristocratas, que recebia as grandes estrelas nacionais e internacionais quando elas vinham para shows no Brasil, como Stevie Wonder, Cassius Clay, Josephine Baker, Johnny Mathis, grande amigo do Agostinho, Jackson Five e tantos outros”, enumera Inácio. “Lutavam pela causa. Ele, Jair Rodrigues, Milton Nascimento. Agostinho foi, além de um excelente intérprete, um ‘relações públicas’ da arte brasileira aqui e no mundo”.

A observação do cineasta pode ser confirmada pelas amizades que o protagonista estabeleceu fora da música. “Agostinho sempre foi briguento. Fazia box com (o pugilista) Éder Jofre, era frequentador assíduo das concentrações da Seleção Brasileira de Futebol e amigo de Pelé, seu fã declarado. Agostinho se impôs pelo talento porque ia à luta e tinha trânsito livre nas emissoras de rádio e TV. Os filhos de Agostinho sofriam mais preconceito nas escolas”, diz. As similaridades com outro astro negro da canção brasileira não se limitariam aos costumes extra música. Agostinho também gravaria “Sá Marina”, hit de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar identificado com a figura polêmica de Wilson Simonal, depois de flertar com o estilo mais cadenciado do chamado “Rei da Pilantragem”.

Depoimentos. O documentário é conduzido cronologicamente por Nancy dos Santos, filha de Agostinho e “grande parceira de vida dele”. “Ela conduz a história de modo sensível e realista”, atesta o diretor. Nancy morreu apenas dois meses depois das gravações. Além dela, comparecem “pessoas com alguma história forte com Agostinho ou conhecedores da música brasileira”, explica Inácio, caso do melhor amigo Milton Nascimento, de quem o intérprete foi uma espécie de padrinho musical, ao inscrever, à revelia dos autores, “Travessia” (de Milton e Fernando Brant) no Festival Internacional da Canção de 1967, tirando o segundo lugar e recebendo uma versão emocionada do próprio Agostinho. “A gente tem é que pedir a Deus: guarda bem esse cara aí em cima”, declara Milton no filme.

Toquinho, Martinho da Vila, Zuza Homem de Mello, Ruy Castro, Roberto Menescal, Marcos Valle, Sérgio Mendes, Agnaldo Timóteo, Claudette Soares, Moacyr Franco, Éder Jofre, Alaíde Costa, Angela Maria e o “companheiro de encrencas” Roberto Luna completam o eclético time de entrevistados. “É muito triste as pessoas só saberem que a gente gosta delas depois que elas se foram. Com Agostinho, foi assim”, lamenta Elis Regina em uma imagem de arquivo que se une a cenas do espetáculo produzido por Thiago Marques Luiz no Teatro Cacilda Becker. “Procurei feito agulha no palheira as imagens raras de Agostinho. Recuperei trechos de películas perdidas em arquivos desorganizados de TVs, tive a super colaboração da TV Cultura. A família de Agostinho cedeu fotos maravilhosas. Garimpar canções foi o maior desafio. Muitas imagens foram apagadas ou simplesmente sumiram. Mas temos excelentes imagens que foram tratadas”, garante Inácio.

Memória. A aproximação do realizador com o ídolo remonta à infância, em Londrina, no interior do Paraná. Era o final dos anos 1950 e ele tinha entre 5 e 6 anos. “Família mineira de origem humilde e lá ficávamos nós, todos os finais de semana ouvindo o que tínhamos: o rádio”. Através das ondas da Rádio Nacional, desfilavam os grandes cantores e cantoras do rádio, que assim entravam na casa e na vida de Inácio. “Cresci ouvindo Nelson Gonçalves e Angela Maria, entre dezenas de outros astros desse nível. Daí para o romantismo de Agostinho foi um pulo”, relembra. Os irmãos mais velhos compravam vinis e ele ia na cola. “Paixão e namoricos sem a voz aveludada de Agostinho, não existiam”, conta. “Cresci e a voz cresceu junto”. Inácio destaca o “repertório de bom gosto, arranjos sensíveis e bem cuidados” como qualidades que o fascinaram de cara.

“Minha mais antiga referência dele sempre foi ‘Balada Triste’ (de Dalton Vogeler e Esdras Silva), um clássico gravado por nossa rainha Angela Maria”. A versão de Agostinho chegou à praça no mesmo ano e teve o êxito compartilhado: “Balada triste/ Que me faz/ Lembrar alguém/ Alguém que existe/ E que outrora/ Foi meu bem”. Inácio formou-se jornalista e, percorridos 43 anos, já tinha se especializado em biografias para programas de TV. “Então decidi pela memória afetiva”, afiança. Antes de Agostinho, dedicou um filme à Leny Eversong. Do rol de prediletas do cantor, ele elege “Estrada do Sol”, de Dolores Duran e Tom Jobim: “É de manhã/ Vem o sol mais os pingos da chuva/ Que ontem caiu/ Ainda estão a brilhar/ Ainda estão a dançar/ Ao vento alegre que me traz esta canção”.

“Agostinho era perfeccionista nos arranjos, muitos feitos por ele. Repetia mil vezes a frase ou música antes das gravações ou dos shows. Tinha fama de ‘chato’, tamanha sua exigência com a qualidade. Seu diferencial vai do timbre aveludado de voz à extrema afinação e o uso do falsete como ninguém fez até hoje. Um intérprete por excelência. O Brasil não pode e não deve esquecer Agostinho dos Santos. Só ouvindo pra entender sua importância”, Ney Inácio (diretor de ‘Agostinho’)

Fotos: Museu da Imagem e do Som/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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