Lucinha Araújo: ‘Sou valente como Cazuza queria que eu fosse’

*por Raphael Vidigal

“Porque o meu canto é a minha solidão
É a minha salvação, porque o meu canto
Redime o meu lado mau, (…) porque o meu canto
É o que me mantém vivo…” Cazuza

Durante 32 anos, Lucinha Araújo, 83, conviveu com o seu único filho e, há três décadas, lida com a ausência dele. “A dor não diminui, nem aumenta, ela muda. Vou pensando em outras coisas. Estou chegando perto dele, em agosto completo 84 anos e, qualquer dia, estaremos juntos. O pai dele já foi”, afirma a mãe de Cazuza, morto no dia 7 de julho de 1990, às 8h30 da manhã, vítima de complicações decorrentes da Aids. Menos de doze horas antes, ele chamou a mãe para dizer que estava morrendo. Lucinha não gostou. Eles haviam combinado de não tocar no assunto. Ao que Cazuza emendou: “Estou morrendo de fome, mãe! Quê que tem pra ‘rangar’?”. Sua última refeição foi um milkshake.

“Não quero me esquecer, quero sofrer, pensar e depois tocar a minha vida. Penso nele todo dia. Choro, tomo banho, enxugo as lágrimas e vou viver, nada vai trazer ele de volta, também não sou sadomasoquista. A herança que ele deixou são todas essas canções lindas que, invariavelmente, estão tocando no rádio”, diz Lucinha. Fundador da gravadora Som Livre e pai de Cazuza, João Araújo (1935-2013) morreu em 2013, aos 78 anos. Ao se abrir o seu testamento, descobriu-se que ele deixou uma herança de R$20 milhões para um filho fora do casamento, tema que Lucinha prefere não abordar para “não mexer em feridas”. Três meses após a morte de Cazuza, ela criou a ONG Sociedade Viva Cazuza.

Esperança. Localizada no bairro das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, a organização atende crianças e adolescentes carentes diagnosticadas com o vírus HIV, além de prestar assistência a adultos em situação de vulnerabilidade. “Muita gente fala que eu sou a tábua de salvação delas, mas foram as crianças que me salvaram. Ficar deitada na cama, pedindo pelo meu filho, não me levaria a nada. A princípio, as pessoas teriam pena, mas, no final, ninguém ia aguentar uma velha chata. Não sou mulher disso e nem Cazuza queria que eu fosse”, declara Lucinha. Em 1989, Cazuza foi a primeira personalidade brasileira a declarar-se soropositivo publicamente, quando a doença era sentença de morte.

“Um dia, o Cazuza me perguntou: ‘Mamãe, o dia que eu morrer, você vai ficar chorando de vestido preto ou vai levar a vida com o papai?’. Eu disse que seria como ele quisesse. E o Cazuza respondeu que queria que eu fosse como a Regina Gordilho”. Em 1987, o filho de Regina, o estudante de educação física e professor de natação Marcellus, então com 24 anos, foi torturado e morto por policiais militares na Cidade de Deus, em Jacarepaguá. Regina encampou mobilizações populares que culminaram com a condenação dos cinco acusados a 18 meses de prisão. Posteriormente, eles foram absolvidos pelo Tribunal de Justiça. Regina elegeu-se vereadora e deputada federal pelo PDT. “Ela foi uma mulher valorosa, valente, como Cazuza queria que eu fosse”, observa Lucinha.

Coragem. Ela considera que o maior exemplo que o filho deu ao Brasil e ao mundo foi, justamente, a coragem. “Não conheço uma pessoa tão corajosa como o meu filho. Eu me achava forte, mas, não sou nada. Imagina você conviver com uma faca apontada para a cabeça por cinco anos, sabendo que era uma doença sem cura nem remédio, e não esmorecer, aparecer magro em público, continuar cantando e sendo aplaudido. Ele incentivou milhões de soropositivos a mostrarem as suas caras”, enaltece Lucinha. Cazuza convenceu os pais de que devia assumir a doença com a seguinte frase: “Como vou cantar ‘Brasil, mostra a tua cara!’, e esconder a minha? As pessoas não vão mais acreditar em mim”.

“Ficamos com medo do preconceito das pessoas, mas a verdade é que ele nunca foi tão amado e admirado. Cazuza era um ser diferente, acho que foi por isso também que viveu tão pouco e foi meu único filho. Deus sabe o que faz”, intui Lucinha. Ela teve problemas na gravidez que a impediram de dar à luz novamente. Diante do panorama político do país, Lucinha não tem dúvidas em apontar aquela como a canção definidora da atualidade. “As mazelas do país que até hoje não se arrumaram estão todas em ‘Brasil’. Cazuza dizia que, nos primeiros tempos de carreira, cantava os amores desvairados e, depois da doença, começou a cantar o país, como em ‘Um Trem Para as Estrelas’ e ‘Blues da Piedade’. Você percebe essa divisão claramente na obra dele”, aponta.

Homenagens. Desde a chegada da pandemia do novo coronavírus ao Brasil, há cerca de quatro meses, Lucinha se refugiou em Angra dos Reis, no Sul do Rio, já que, pela idade, ela pertence ao grupo de risco da enfermidade, responsável pelo óbito de mais de 65 mil brasileiros até aqui. Segundo ela, a Sociedade Viva Cazuza, que vive dos direitos autorais do cantor, tem se sustentado satisfatoriamente nesse período. “Por sorte, nunca tive tanto bebê recém-nascido, estamos com dez lá, e os coitadinhos não reclamam. O problema são os mais velhos. As crianças não estão mais aguentando ficar trancadas, então eu pedi ao motorista e ao supervisor para passear de van com elas pela orla de Niterói e parar num McDonald’s. Elas adoram essas porcariadas”, conta Lucinha.

Ela, no entanto, está com a vida parada. Todas “as mil homenagens” pelos 30 anos da morte de Cazuza, como a reestreia do musical “Cazas de Cazuza”, ficaram para o ano que vem, inclusive um álbum com letras inéditas do compositor, aventado desde 2015. O projeto tem as participações de Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Gilberto Gil, Bebel Gilberto, Leoni, Seu Jorge, Nando Reis, Baby do Brasil, Rogério Flausino e Wilson Sideral, que colocaram melodias em alguns tesouros guardados, como “Tocha Acesa”, “Estranha Palavra”, “Não Reclamo”, “O Amor É Brega” e “Brazilian Prayer”. Nos últimos anos, registros desconhecidos com a voz do poeta exagerado vieram à tona, casos de “Sorte e Azar”, revelada em 2012, e “Dia dos Namorados”, que apareceu no ano de 2017.

Novidades. A primeira canção foi descoberta pelos integrantes do Barão Vermelho, grupo no qual Cazuza atuou como vocalista até 1984. Gravada para o LP de estreia da trupe, em 1982, “Sorte e Azar” foi banida do repertório graças ao lado supersticioso do produtor Ezequiel Neves, que se recusava a ouvir e pronunciar a palavra “azar”. “Nem eu conhecia, o Frejat que me mostrou”, informa Lucinha. A música encerrava o espetáculo teatral “Pro Dia Nascer Feliz”, protagonizado pelo ator Emílio Dantas. “Tudo é questão de não se negar nada/ A nenhuma força que dê luz/ Seja de Deus ou do diabo/ Se for claro, é só pagar pra ver/ E se por acaso, doer demais/ É porque valeu”, dizem os versos do blues.

“Dia dos Namorados” foi um presente de Cazuza para Zezé Motta, que a registrou em uma fita cassete, porque estava sem gravadora na época. Os dois se conheceram em um aniversário de Sandra de Sá, comadre do autor de “Exagerado”. A versão com a voz de Cazuza foi recuperada por Nilo Romero entre as sobras do álbum “Ideologia” (1988), que ele ajudou a produzir. Lançada no dia 12 de junho de 2017, ela ganhou o acréscimo da voz de Ney Matogrosso, amigo até o fim da vida de Cazuza e diretor, iluminador e cenógrafo do show “O Tempo Não Para”. Em 1979, os dois iniciaram um romance que durou três meses. Lucinha entrega que, recentemente, foi procurada pelo músico Nico Rezende para autorizar o lançamento de outra canção com a voz de Cazuza.

Lembrança. Nico é o produtor de “Exagerado” (1985), primeiro disco solo de Cazuza. Em 1987, a dupla cantou junto a faixa “Fora da Lei”. “Volta e meia, surge uma surpresa. A própria música que fez a Cássia Eller estourar, eu não conhecia. O Cazuza tinha morrido há uns cinco anos já, quando escutei ‘Malandragem’. Era uma letra feita para a Angela Ro Ro, que achou ridículo cantar que era ‘uma garotinha vestindo meia três quartos’. Ela sempre conta essa história nos shows”, diverte-se Lucinha. Cássia Eller (1962-2001) dedicou dois álbuns a Cazuza: “Veneno AntiMonotonia” (1997) e “Veneno Vivo” (1998). “A Cássia era danada, ela gravava de primeira e cantava Cazuza lindamente”, recorda. Em abril, Leila Pinheiro, Roberto Menescal e Rodrigo Santos colocaram na praça o CD “Faz Parte do Meu Show: Cazuza em Bossa”.

Sincera, Lucinha admite que não tem intérprete favorito para as canções de seu rebento, além dele próprio. “Muita gente canta mal Cazuza, mas não vou nomear porque é sacanagem”, dispara. “A música leva o intérprete. Uma vez abri uma única exceção. Falei para o Luiz Melodia (1951-2017) que ele cantou ‘Codinome Beija-Flor’ melhor do que o meu filho”, confessa. Ela mesma recebeu convites para interpretar Cazuza, vindos de Ezequiel Neves. Na década de 1980, Lucinha gravou dois LP’s: “Do Mesmo Verão” e “Tal Qual Eu Sou”. Uma bonita versão para “Peito Vazio”, de Cartola e Elton Medeiros, pode ser ouvida nas plataformas digitais. “Já gravei dois discos, está bom, marquei minha presença no cenário musical. Cazuza adorava que eu cantasse, mas não sei se ia pegar bem”, justifica.

Encontros. Na abertura do programa “Conversa com Bial”, em abril de 2018, Lucinha cantou “Preciso Dizer Que Te Amo”, como forma de homenagear o aniversário de 60 anos de nascimento de Cazuza. “Canto em roda de amigos, já passei da idade, daqui a pouco vou acabar que nem a Dona Ivone Lara (1922-2018)”, brinca. Octogenária, Lucinha garante não se importar com a velhice. “Na minha cabeça, eu tenho 50 anos, sou amiga de todos os amigos do Cazuza”. De acordo com a entrevistada, “Cazuza era amigo de todo mundo, de Caetano Veloso a Lobão”. “Adoro o Lobão, com todas as polêmicas. Ele e Cazuza se davam superbem. Quando as pessoas cobravam o Cazuza a se posicionar contra alguém, ele falava: ‘Quem fala mal é o Lobão, deixa isso para ele’”, conta.

Adriana Calcanhotto, Ney Matogrosso e Bebel Gilberto também entram no rol de elogios. “Eu falei para o Ney gravar ‘Mulher Sem Razão’, uma música linda que o Cazuza fez para a Bebel, que é doidinha e como se fosse uma irmã para ele, e o Ney não quis. Depois ele mudou de ideia e me deu razão, sou metida mesmo”, diz. Frejat, que Cazuza chamava de “brou”, sinônimo para “irmão”, é outro querido. A exceção fica para Dinho Ouro Preto, que, nas palavras de Lucinha, “deu uma entrevista horrível falando mal do meu filho”. “Ele é invejoso, covarde, o meu filho não podia mais se defender. Quando ele me cumprimenta, eu viro a cara. Pena ele não ter morrido quando caiu do palco, sou má”, detona.

Pérola. Com Ezequiel Neves (1935-2010), a relação era dúbia. Companheiro de primeira hora de Cazuza, produtor de todos os seus álbuns e parceiro em canções como “Codinome Beija-Flor”, “Por Que a Gente É Assim?”, “Burguesia” e “Exagerado”, de quem teria sido o “muso” inspirador, o jornalista belo-horizontino morreu no mesmo dia do amigo, exatos 20 anos depois. “O Zeca disputava o Cazuza com a gente. Ele fez muito bem intelectualmente ao meu filho, era um homem muito culto, mas, olhando friamente, em termos de droga, maluquice, loucura e ‘viadice’, fez muito mal”, opina Lucinha. “O Zeca não foi o responsável, Cazuza não era idiota, mas teve uma influência negativa, amigo é assim”, completa.

Ela queria que o filho se mirasse em Frejat. “Cazuza retrucava que o Frejat não era santo”, pondera. Instada a eleger a sua canção favorita do eterno poeta exagerado, Lucinha oferece a oportunidade de descobrir uma parte menos conhecida da obra. “O Rogério Flausino é a minha mais nova aquisição e já sugeri a ele que gravasse um disco só com músicas bonitas do Cazuza que não fizeram sucesso”, comenta. Destas canções, ela destaca “Quando Eu Estiver Cantando”, parceria com João Rebouças lançada no álbum “Burguesia”, de 1989. A balada teria sido composta para Maria Bethânia.

No dia da morte de Cazuza, Renato Russo (1960-1996) a apresentou em um show como “a última música, do último lado, do último disco de Cazuza”, e a uniu à clássica “Endless Love”, de Lionel Ritchie, que o homenageado adorava. “Tenho ideias de colocar ela num show com a voz do Cazuza nos primeiros versos e, depois, o artista entra no palco e continua cantando. É linda”, enaltece Lucinha. “O meu canto é o que me mantém vivo”, determina a letra.

Fotos: Arquivo Pessoal/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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