Ivan Lins: ‘O Brasil estava na contramão de si mesmo, mas agora está de volta’

*por Raphael Vidigal

“A paz dos jardins e as benevolentes luzes nas janelas derramavam terna influência dentro do seu coração sem sossego.” James Joyce

Tem uma coisa que Ivan Lins sempre fez, porque gosta de fazer: canções de amor. “Sempre foi sob essa ótica de um sentimento pacifista, de que tudo que é feito com amor vale a pena. Podemos falar do amor de várias formas: pela pessoa amada, pela família, ao país, ao próximo, e por aí vai. Acho que quanto mais você puder colocar amor na sua mensagem, melhor. O amor sempre foi resistência”, explana ele que, beirando os oitenta anos, ainda se considera um “repórter do meu tempo”.

Ivan acaba de colocar na praça “My Heart Speaks”, algo como “falar com o coração” numa tradução literal, e cujo título em inglês explica a origem. Lançado pela Resonance Records, selo norte-americano sediado em Los Angeles, o álbum põe fim a um hiato de doze anos sem um trabalho inédito do compositor. Com produção luxuosa e as presenças da Orquestra Sinfônica da Geórgia e do trompetista Randy Brecker, ainda recebeu um elogio pra poucos feito pelo dono da gravadora, o americano George Klabin, que compara Ivan a Tom Jobim (1927-1994).

“Acho que ele está sendo bastante generoso! Jobim foi um gênio, um dos maiores compositores do mundo, a obra dele é irretocável”, agradece Ivan, aos risos. “Na realidade, eu sou o Íbis e Jobim é o Real Madrid”, brinca, numa alusão modesta àqueles que seriam, respectivamente, o pior e o melhor time do planeta, antes de enumerar “Olha, Maria”, “Eu Te Amo”, “Sabiá” e “Águas de Março” como algumas de suas canções prediletas de Jobim. “São obras de gênio”.

Jazz. Porém, ao contrário de Jobim, que considerava que no Brasil sucesso era ofensa pessoal, Ivan se mostra satisfeito com o acolhimento de sua música no país. “Minha música é extremamente valorizada aqui no Brasil. Lá fora é em um contexto diferente, dentro de um segmento do jazz, do blues, de uma música mais sofisticada. Aqui no Brasil minha música consegue ser popular também”, diz ele, que pinça como exemplo o espanto dos gringos diante da recepção pelo público brasileiro do hit “Madalena”, parceria com Ronaldo Monteiro eternizada no canto atemporal de Elis Regina (1945-1982), em 1970.

“Lá fora ‘Madalena’ é considerada uma música jazzística, pelos acordes, pela harmonia. Eles viam o povo todo cantando aqui no Brasil e não entendiam nada, porque o povo brasileiro é muito mais musical”, atesta. Em “My Heart Speaks”, Ivan tem as suas músicas interpretadas por divas do jazz norte-americano, como Dianne Reeves e Jane Monheit, além da jovem revelação Tawanda, mexicana filha de mãe alemã e pai moçambicano, que o acompanham nas versões em inglês para “Antes e Depois”, “Anjo de Mim” e “Rio de Maio”. Nada que altere essencialmente a convicção que ele construiu ao longo da vida.

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“As brasileiras embarcam na letra, são mais viscerais do que as americanas, não tem comparação”, sustenta Ivan, que cita Maria Bethânia, Fafá de Belém, Zizi Possi, Simone e Nana Caymmi para embasar sua tese, sem falar em Elis, a quem ele considera, “a maior cantora do Brasil e depois, muito próxima dela, Leny Andrade”. “É uma escola que sumiu no Brasil, não sei o que acontece com as novas cantoras, mas elas não embarcam muito na letra, ao contrário do que acontecia nas décadas de 1950, 1960, 1970, até 1980”, posiciona.

MPB. O músico também coloca o Brasil em um patamar superior noutro aspecto. “As letras norte-americanas normalmente são inferiores às brasileiras, a letra em inglês geralmente não consegue repetir a densidade da brasileira e, muitas vezes, as versões são completamente diferentes”, observa. “As americanas cantam lindamente, vocalmente são magníficas, mas não têm essa coisa visceral”. Ivan se recorda de quando convivia com Elis, e como a artista determinava o andamento de toda música.

“Além da afinação, do timbre, o que mais impressionava era a musicalidade, ela interferia nos arranjos, sabia exatamente o que queria, várias músicas têm o dedo dela, e, claro, a percepção de texto que ela tinha. Elis era uma grande atriz também”. Essa foi uma das lições que a intérprete, que ainda gravou de Ivan músicas como “Cartomante” e “Aos Nossos Filhos”, parcerias com Vítor Martins, deixou para ele. “Elis me falava sobre a importância de tocar na letra e passar o conceito da música, o que ela conseguia fazer nas apresentações como ninguém, de uma maneira tão intensa que saltava aos olhos”, relembra.

Com uma formação jazzística de quem cresceu ouvindo big bands e depois passou para a bossa nova, Ivan atuou durante um bom tempo como pianista dedicado ao repertório instrumental. Foi ao ingressar na faculdade e tomar contato com os diretórios acadêmicos, de onde sairia, por exemplo, o MAU (Movimento Artístico Universitário), formado, dentre outros, por Gonzaguinha, Aldir Blanc e César Costa Filho, que Ivan passou a se interessar em compor músicas com letra.

Parcerias. “Harmônica e melodicamente essas coisas estavam impregnadas em mim. Fui abrasileirando minhas composições pela influência de Tom Jobim, Carlinhos Lyra, Milton Nascimento, Edu Lobo, Dori Caymmi, mas, quando minha música cai na mão estrangeira e se torna internacionalizada, todos a classificam como jazzista. O irônico é que, aqui no Brasil, ninguém me convidava para festivais de jazz. Aqui eu sou pop, lá eu sou jazz”, diverte-se.

Essa proximidade com a MPB rendeu um encontro raro com outro baluarte da canção brasileira. Certa manhã ouvindo rádio, Ivan se deleitou diante da beleza de “Joana Francesa”, um dos tantos clássicos de Chico Buarque. Inspirado, ele correu ao piano e batizou o novo rebento de “Buarqueana Nº 2”, porque já havia a número um. Quando Leila Pinheiro perguntou se ele tinha alguma inédita na manga, não se fez de rogado e entregou a novidade. Ela passou a mão no telefone e quem atendeu a linha do outro lado foi Chico Buarque, o que não era de se esperar, pois ele quase nunca estava em casa. Com a letra de Chico, “Renata Maria” foi lançada por Leila, ganhou as vozes dos parceiros e agora abre “My Heart Speaks” no canto de Ivan.

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Com Vítor Martins, seu parceiro mais frequente, comparece “Corpos”, escrita durante o tenebroso período da ditadura militar. Ivan, que sempre se posicionou nos momentos politicamente mais duros do país, revela sua satisfação com a vitória do presidente Lula para seu terceiro mandato na última eleição. “Tivemos quatro anos bizarros com uma proximidade preocupante àquele período da ditadura, o Brasil despencou em sua humanidade e em valores que eram adorados no mundo todo, como nossa alegria, gentileza, cordialidade, viramos intolerantes. Foi um Brasil estranho, na contramão de si mesmo, que deu essa escorregada feia, mas agora, graças a Deus, estamos de volta”.

Foto: Rodrigo Simas/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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