Isabela Moraes estreia álbum e anuncia clipe contra relacionamentos tóxicos

*por Raphael Vidigal

“E o verso nascido
de tua manhã viva,
de teu sonho extinto,
ainda leve, quente
e fresco como o pão.” João Cabral de Melo Neto

Isabela Moraes, 40, adormeceu à tardinha e se viu dentro de um estúdio com o encarte do disco na mão. Ao despertar, tinha uma música inteira na cabeça, com ideias para o arranjo, melodia e letra. “Fiquei impressionada, porque era muito nítido, palpável, ali na minha frente. Peguei papel e caneta na mão e anotei tudo na hora. Já tinha me acontecido isso outras vezes, mas nunca de uma maneira tão forte e real”, conta ela.

A estupefação a levou, inclusive, a digitar a letra no Google para confirmar se a música era dela mesmo ou se já existia. Dúvida sanada, ela cantarolou os versos para um amigo, que disse: “Essa música não existe, mas vai passar a existir”. Assim nasceu “Pra nos Perdoar”, cujo trecho “não dê ouvidos à maldade afora”, de fato remete à “Sua Estupidez”, clássico de Roberto Carlos lançado em 1969. A faixa encerra “Estamos Vivos”, álbum que Isabela acaba de colocar na praça, com repertório totalmente autoral.

“Desde criança, o meu processo de composição é bastante intuitivo, espontâneo, rápido. Não penso demais para fazer uma canção. Gosto muito de ler e defendo a ideia de que, ao nutrir o meu cérebro, as ideias vêm até mim. Junto a isso, eu sempre fui muito observadora”, diz. “Mais jovem, eu conversava com a minha mãe sem entender direito isso que acontecia comigo, porque a arte era algo distante da minha realidade. Com a vivência, comecei a compreender melhor esse meu processo”, completa.

Memória. A ligação com a música começou cedo. No entanto, a mais remota lembrança de Isabela é, por assim dizer, “assustadora”. Ela saía correndo toda vez que passava pela sala, onde o pai escutava seus LP’s, e se deparava com a capa de “A Peleja do Diabo com o Dono do Céu”, de Zé Ramalho, onde o anfitrião dividia a cena com a atriz Xuxa Lopes, vestida de vampira, e José Mojica Marins na pele de Zé do Caixão, sua mais notória personagem.

“Eu era muito pequenininha, mas, ao mesmo tempo em que eu morria de medo, aquilo me fascinava, assim como a capa do disco do Secos e Molhados com a cabeça do Ney (Matogrosso) na bandeja”, recorda. A canção “Mistérios da Meia-Noite”, do mesmo Zé Ramalho, também a deixava de cabelo em pé a cada instante que surgia na novela “Roque Santeiro”, de 1985. “Eu prestava muita atenção nas letras e depois chorava absurdamente, mas escondida. Não entendia o que estava acontecendo dentro de mim e não queria que ninguém achasse que eu estava ficando doida”, confessa.

Estreia. A “loucura” de Isabela se transformou em profissão. Embora já tenha gravado outros dois discos, ela considera “Estamos Vivos” o primeiro que mereça “ser chamado de álbum”, inclusive pela divulgação em nível nacional. “Os outros foram demos. O primeiro eu tinha apenas 18 anos e não participei da condução e, o segundo, é um apanhado de canções que eu quis registrar em um ensaio, para não perder o material. Acabei ganhando um encarte de uma designer maravilhosa de Recife e começamos a vender nos shows. Mas me incomodava os erros e as falhas técnicas”, pontua.

O título do atual rebento não aparece em nenhuma das onze canções do disco. A intérprete explica que, durante suas apresentações, convidava o público “a celebrar o agora”, por meio do grito “viva, estamos vivos!”. “Quando acabavam os shows, as pessoas vinham me cumprimentar e agradecer, por lembrá-las que elas estavam vivas. Isso foi se fortalecendo dentro de mim e, durante a feitura do álbum, eu pensava muito nesse existir do ser humano, nessa essência de trilhar um caminho sem se perder”, destaca ela, que, no início do ano, recebeu um elogio público de Alceu Valença.

Origem. Na reunião para ser contratada pela gravadora Deck, Isabela bateu o martelo do batismo com Rafael Ramos, que assina a produção ao lado de Juliano Holanda. Com a chegada da pandemia do novo coronavírus ao país, responsável pela morte de mais de 25 mil brasileiros até aqui, “tudo se encaixou”, diz ela. “Mais do que nunca, é hora de celebrar a nossa existência, já que, paradoxalmente, estamos envoltos em um clima de vida versus morte, tensão e angústia”, assinala.

Diante desse cenário, a intérprete deixou São Paulo, onde morava há sete anos, em direção à sua terra natal. “Sou de Caruaru, do agreste de Pernambuco, e a minha música reflete a força desse sol no meu chão. Aqui, quando a chuva cai, ela cai de muito. Sou fruto dessa terra e as canções brotam em mim com a força dessa intensidade com a qual nasci”, afiança a entrevistada, que aproveita para tecer um agrado ao sotaque mineiro do repórter. “Sou apaixonada, fico doidinha”. O carioca Antonio Adolfo e o paulistano Marcelo Jeneci completam o caldo sonoro do álbum e comparecem a bordo de piano, sanfona, vocais e sintetizadores.

Pandemia. Isabela lamenta que, atualmente, as rádios tenham restringido seu leque de atrações, e relembra que, na infância, Caruaru absorvia, através das ondas sonoras, “a musicalidade de Caetano (Veloso), Luiz Gonzaga, Benito di Paula, Milton Nascimento”. “Corri para cá na quarentena porque me sinto segura e mais livre. É uma situação sufocante e, nas cidades maiores, você precisa obedecer a mais restrições. Aqui é o meu porto seguro”, define. Apesar disso, ela não esconde a preocupação com a avó idosa e a mãe, que tem uma doença séria nos pulmões, o que as coloca no grupo de risco.

“É um período desafiador, cheio de tensão e dúvidas. Fico entre o otimismo e o medo, acreditando que sairemos dessa como pessoas melhores, mas, ao mesmo tempo, com um pé fincado na realidade, consciente de que vivemos uma fase perigosa. É cruel e ruim o que temos passado, com esse medo de morrer a cada segundo. Isso adoece a nossa cabeça, mexe com o psicológico”, aponta. A compositora define a chegada do disco como “uma maneira de salvar a mim mesma”. Para trocar “a estagnação por uma energia boa”, ela focou na produtividade e deu vazão ao clipe “Tempo de Esperas”.

Esperança. Impossibilitada de se deslocar aos estúdios da gravadora e contar com todo um aparato tecnológico, Isabela teve de “se virar como pôde”, e experimentou uma nova fase de descobertas. “Você tira ideias e recursos que nem sabia que tinha, dentro e fora de você”, assegura. Com a ajuda da sobrinha Vitória, “uma jovem de 19 anos que está pra frente nessas coisas de internet”, a cantora obteve êxito na elaboração do videoclipe, que atualmente conta com 5 mil visualizações no YouTube. “Chegamos na simplicidade e leveza que a gente queria”, observa. Em breve, a música “Do Contra” também vai ganhar uma versão audiovisual, com “a presença de várias mulheres fortes”, que foram convidadas por Isabela a enviarem seus vídeos, como a cantora Bruna Caram.

“É uma canção que fala sobre relacionamentos tóxicos, e de como nós, mulheres, estamos firmes e fortes, porque todas juntas representamos também uma só. Queremos pensar na gente para que todas sintam que não estão sozinhas”, conclama. No rol de cantoras que admira, Isabela cita Maria Bethânia, “pela intensidade, inteligência, espiritualidade e dicção das palavras”. “Estou rezando para que ela escute o meu disco”, entrega. E, ainda, Gal Costa, Marisa Monte, Vanessa da Mata, e as conterrâneas Flaira Ferro e Gabi da Pele Preta. “São artistas que vão continuar floreando e transformando o mundo com suas canções”, finaliza.

Fotos: Leo Aversa/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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