“Hesito, é certo, mas aguardo o assombro
com que verei descer de céus remotos
o raio que me fenderá no ombro.” Ferreira Gullar
Desde menina era arteira. Orgulhava-se dessa palavra. Repetia para si mesma: “arteira, sou uma menina arteira”. Vivia na roça, no interior das Minas Gerais. Tinha que plantar o que comer, ajudar a ordenhar as vacas, divertia-se vendo o leite escorrer daqueles animais tão grandes que ao mesmo tempo podiam ser tão mimosas, nome, aliás, muito adequado para uma vaca. Mas via também cenas de violência com as quais se acostumara. O ritual para matar um porco é dos mais estridentes, o bicho demonstra aos berros a agonia da morte. Para uma galinha também não é nada fácil, mas tia Ofélia se acostumara.
Agora uma mulher idosa recordava com saudades da infância. O pior período viera depois, embora ainda moça, tornara-se uma adulta quando aos quatorze anos foi desposada, e conheceu o inferno com requintes de crueldade. O homem que a desposou no início foi muito simpático, ganhou a confiança do pai e, sobretudo, da mãe. Mas bastaram estarem sós depois da primeira noite de núpcias para as maldades começarem. O homem, de quem, a essa altura da vida, recusava-se a repetir o nome, gostava de caçar. Saía todas as noites e voltava repleto de sangue, comemorando a vitória da matança.
Outro vício era a cachaça. Mas o terceiro vício e pior de todos, o que mais se repetia, era o de pôr em prática o seu sadismo. Despia tia Ofélia, obrigava que ela se virasse e começava a chicoteá-la. Uma, duas, três, quatro, um milhão de vezes, incontáveis, e por fim o sangue se misturava ao sangue da caçada do homem e suas costas eram um canavial de tantas cicatrizes que queimavam e ardiam por milhões de noites, que nunca cessavam, pois na noite seguinte, o ritual sádico recomeçava. Quando se cansou de espancar a pobre coitada, o homem resolveu adicionar uma nova rotina àquela crueldade.
Todas as noites abria a boca de tia Ofélia e obrigava-a a engolir enormes nacos de fígado cru, com uma espingarda apontada para a sua cabeça. O enjoo era tanto que tia Ofélia vomitava, mas como isso gerasse uma reação ainda mais violenta do carrasco, que voltava à carga com maiores e mais fedorentos pedaços de fígado cru, ela acabou se acostumando ao gosto morto da podridão. Até hoje reverberam em sua garganta uma agonia azeda, um odor de moscas e carne crua. Como também era estuprada por esse homem, apesar de casados, tia Ofélia teve com ele um filho.
Um dia, o filho cansado de assistir àquele ritual sádico de carne crua, estupro e espancamentos, apontou uma arma para aquele homem, que era seu pai, e com um único tiro o matou. Dias antes, por virtude dos conhecimentos de cigano e magia negra que tia Ofélia aprendera com sua avó, o homem havia chegado em casa marcado de saraivadas, branco de raiva, amarelo de medo, por ter sido perseguido por um espírito da floresta que o ameaçara com uma tocha acesa e lhe queimara partes da costela, bem próximas ao fígado. Nessa noite, tia Ofélia fora obrigada a engolir uma quantidade inimaginável de fígado cru.
Tia Ofélia recostasse em sua cadeira de palha. O filho tornou-se um homem bom, apesar de tudo. Está casado, com uma boa moça. Têm uma filha. Uma menina “arteira”, assim chama sua neta: “Arteira!”, com um orgulho enorme.
Raphael Vidigal
Pinturas: obras de Mark Rothko.