Dois ou três crimes que cometi dormindo

“Como se os caminhos familiares traçados nos céus de verão pudessem conduzir tanto às prisões quanto ao sono inocente.” Albert Camus

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“- É necessário que haja dolo”, intercedeu meu advogado.
“- Constatado”, retrucou o juiz.

Então eu havia sido condenado por dois ou três crimes que cometera dormindo. Não negava aquela acusação. O que me indignava era saber como aqueles crimes cometidos em sonho haviam alcançado a realidade. Quem fora o delator? Quem me entregara?

Eu mesmo era incapaz de tal ato, e também de dividi-lo com outras pessoas, tamanha a crueldade e a natureza, sem dúvida, grotesca, daqueles crimes. A vergonha, controle social de toda e qualquer sociedade civilizada me impediria de confessar. Mas nos sonhos, ambiente livre dos braços da repressão, eu era bem capaz de cometer aqueles crimes de novo, o que me preocupava ainda mais, pois já na prisão minha pena poderia ser triplicada.

Por bom comportamento, por outro lado, eu não teria refresco. Além do dolo, o que complicava minha situação era a natureza hedionda daqueles crimes. Haviam sido colocados em tal categoria pela ocultação do corpo, a tipificada no código penal “ocultação de cadáver”. Por terem sido cometidos em sonho, obviamente os crimes não deixaram rastros, muito menos corpo. Mas para a Justiça isso não importava. Importava o que constava nos autos: “Eu cometera um crime hediondo, cujos corpos jaziam ocultos”, tive que assinar essa declaração para que não apanhasse ainda mais dos guardas.

Outra questão era intrigante. Fazia menção ao número de crimes cometidos por mim em sonho. Afinal eram dois ou três? Por via das dúvidas, a Justiça resolveu me qualificar como um assassino em série, que numa tacada só aniquilara um número plural de seres humanos. E assim resolveram nos autos. Quanto à característica mais relevante, a do “dolo” levantada por meu nobilíssimo advogado, era a maior charada. Convocaram um psiquiatra para prestar esclarecimentos ao Tribunal.

Afinal de contas, eu controlava meu sonho? Eu cometera dois ou três crimes em sonho no domínio das minhas faculdades psíquicas e psicossomáticas além de outras letrinhas mais? O crime havia sido, portanto, premeditado? Eu já deitara na cama, naquela noite, com a clara intenção de que iria sonhar e dar cabo daquelas pessoas? Questões complexas, que o psiquiatra não soube responder de uma vez só, e fez ainda mais perguntas ao nobilíssimo Júri, deixando-os tão perplexos quanto lhes permitem as togas.

Então, convocaram uma nova testemunha, um vagabundo, bêbado, um palhaço que circulava pela cidade exigindo trago e cigarros e que era, diziam os outros, especialista em sono. Ele encarou o Júri, acendeu um de seus cigarros mais amassados do que dinheiro de pobre, pediu licença para derramar naquele excelentíssimo chão um gole de pinga em homenagem ao santo, e puxou um ronco. Quando acordou, esquecera de me perguntar no sonho se houve dolo, se aqueles dois ou três crimes haviam sido planejados.

Como a discórdia se instalasse me trancaram numa solitária, onde já penso em meu próximo sonho.

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Raphael Vidigal

Pinturas: obras de De Chirico; e Hieronymus Bosch, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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