“E naquela ocasião, não com palavras, e sim com fatos, demonstrei que a morte, se a palavra não soar por demais vulgar, não possui importância alguma para mim, mas de não cometer injustiças ou crueldades, isto sim me importa acima de qualquer coisa.” Sócrates
É possível supor, com alguma benevolência, que boa parte das pessoas que se dizem favoráveis à pena de morte não leva em grande conta a possibilidade de injustiças, o que soa contraditório para os que se declaram cristãos e devem conhecer, minimamente, a trajetória do homem que lhes inspira a fé. Pois é um caso dessa natureza que baliza a narrativa de “Milagre na Cela 7”, refilmagem turca para o original sul-coreano de 2013, que vem causando alvoroço na Netflix.
Informações sobre o apoio de Tony Blair, então primeiro-ministro do Reino Unido, à guerra do Iraque, em 2003, são divulgadas quando as primeiras imagens tomam a tela. Uma jovem vestida de noiva está diante do espelho e se sente tocada por uma notícia em especial, que vem logo em seguida: a pena de morte acaba de ser extinta na Turquia e a última execução ocorreu em 1984. É o preâmbulo para que a trama retorne, exatamente, a 1983. Ou seja: vem drama por aí. E dos bons. Pode-se até dizer que o filme pega pesado em seu excesso de tragédias, mas elas não chegam a ser inverossímeis.
O cenário agora é o inverso da pretensa abertura democrática que avistamos no início e, ironicamente, muito mais parecido com a Turquia atual, comandada há 15 anos por Erdogan, presidente com formação islâmica acusado de uma série de crimes contra a humanidade. O país nos surge sob a tutela de militares e generais truculentos, possuídos pela autossuficiência decorrente do excesso de poder. Alheio a essa realidade, o protagonista Memo espera sua filha, a pequena Ova, na porta da escola. Porém, Memo está longe de ser um pai como outro qualquer, o que provoca zombarias das outras crianças.
Quando Ova pergunta para a avó, Fatma, porque seu pai não é igual aos demais, enquanto ele conversa animadamente com as ovelhas das quais toma conta numa pequena propriedade rural onde vivem, ela responde que ele e a filha possuem a mesma idade, arrancando um sorriso da neta. O corpo adulto de Memo é habitado pela alma e os pensamentos de uma criança. Para o mundo exterior, no entanto, o choque provocado por essa contradição recebe respostas, quase sempre, agressivas e duras. São poucos os que acolhem com generosidade o alegre Memo, caso do dono da loja que vende uma bolsa da personagem Heidi, desejada como um verdadeiro tesouro por Ova.
A situação piora a partir do momento em que Memo é acusado pela morte da filha de um general, e começamos a ver como a Justiça pode ser manipulada. Ao chegar à cela 7 que dá nome ao longa, os outros prisioneiros ficam sabendo do crime que Memo teria cometido e infligem a ele ainda mais sofrimento. Acontece que, a despeito de toda a violência com a qual se depara, Memo é incapaz de acumular rancores, ressentimentos e mágoas. Inexistem nele desejos de vingança e a própria maldade, fato que fica evidente durante uma bela e bem armada passagem dentro da cela, quando Ova é levada, às escondidas, para visita-lo. Espontaneamente, Memo vai retirando, aos poucos, as crostas de insensibilidade que residem nos que estão à sua volta.
Tal como uma criança e a própria filha Ova, ele conserva a capacidade de enxergar para além do óbvio que a realidade física e material nos mostra, alcançando o sentido lúdico das coisas. É esse convite à humanidade que a produção nos faz, ao mirar, como um bom drama, a sensibilidade do espectador.
O desempenho de Aras Bulut İynemli como Memo, num papel dificílimo, é determinante para o sucesso da empreitada, assim como o de Nisa Sofiya Aksongur na pele de Ova. A trama é conduzida com domínio pelo diretor Mehmet Ada Öztekin, e sabe conciliar os momentos de desolação com suspense e até humor, combinando sequências pesadas com raros instantes de leveza. A bela fotografia é outro ponto a se destacar. Não se admirem se, no próximo Oscar, a história de Memo abocanhar uma estatueta, ainda mais depois de “Parasita”.
Raphael Vidigal
Imagens: Netflix/Reprodução.