Entrevista: Zezé Motta costura as linhas de atriz e cantora

“Ao fim de alguns dias, habituado a seus lábios, não pensava em outras delícias.” Raymond Radiguet

Zeze Motta - Credito rogerio ehrlich

Num banquete oferecido pelo produtor Guilherme Araújo, todos se sentaram à mesa para reverenciá-la. Entre os presentes estavam autoridades da música como Caetano Veloso, Rita Lee, Moraes Moreira, Luiz Melodia, e outros. Algumas ausências sentidas como as de Chico Buarque e Francis Hime, mas nada que atrapalhasse o espetáculo. Essa história bem poderia ser a de Xica da Silva, mas é a de Zezé. “No começo incomodava um pouco, porque sonhava em imprimir meu nome na mídia: ‘Zezé Motta’. Mas depois percebi que ela era uma ótima madrinha!”, afirma, com a sonora gargalhada, ao relembrar os preparativos para o lançamento do seu primeiro LP e também o sucesso nas telas de cinema que a acompanha até hoje. “Ainda tem gente na rua que me chama de ‘Xica’”, confessa com o humor que é característico.

Hoje aos 70 anos, completados no último dia 27 de junho, Zezé Motta faz planos tanto para a carreira de atriz quanto para a de cantora. Em agosto retorna às novelas da Rede Globo, afastada desde “Sinhá Moça”, de 2006, em “Boogie Oogie”, nova atração do horário das 18h, onde viverá a empregada Sebastiana. Já em relação aos palcos, mantém certo mistério, mas continua dando voz a sucessos da carreira e em especial da seara do samba, deixando no ar um projeto inscrito na lei de incentivo à cultura em busca de patrocínio e gravadora. No último álbum lançado por Zezé, “Negra Melodia”, em 2011, pela gravadora Joia Moderna, do DJ Zé Pedro, a artista cantou músicas de Jards Macalé e Luiz Melodia, e o processo de decisão por este repertório rendeu boas histórias e ótimas risadas, como de costume na trajetória de Zezé Motta.

MALDITOS GÊNIOS
Conta Zezé que Zé Pedro a telefonou, pelo fato de se gostarem muito, e disse: “Faço questão da sua presença!”. “Na época o selo gravava apenas mulheres”, continua, e revela que logo de saída surgiu um entrave. “Eu estava em turnê com o meu show ‘O Samba Mandou Me Chamar’, e disse isso ao Zé Pedro, só que ele retrucou dizendo: ‘Zezé, é uma pena, mas o meu negócio é jazz, blues, rock’, então matutei uma alternativa para participar do projeto de outro jeito”, destaca. Dois velhos conhecidos a visitavam pelas ondas do rádio. “Nessa época estava ouvindo muito o Jards Macalé, e tinha uma frustração de não ter gravado um álbum em homenagem ao Luiz Melodia”. Então quando menos esperava, quando acreditava já ter chegado a um veredicto, Zezé descobriu que Melodia se preparava para gravar alguns sucessos da carreira.

“Fui ver e descobri que as músicas eram as mesmas que eu pretendia registrar, todas as que eu gosto muito, ‘Ébano’, ‘Pérola Negra’, ‘Questão de Posse’”, enumera. Daí o projeto deu uma nova guinada. “Desisti de imediato desta ideia, não podia competir com o autor!”, assume com outra sonora risada. Zezé resolveu então telefonar para Zé Pedro e confessar a incerteza, não sabia se fazia um disco em homenagem a Macalé ou a Luiz Melodia, mas priorizaria as canções menos conhecidas, deixando de fora os hits. Com sua verve exagerada, Zé Pedro não deixou por menos: “Ora, façam com os dois!”, disse ele o que repete Zezé. A ideia caiu como luva no colo da cantora-atriz. “O Melodia é pop, tem tudo a ver com o selo, os dois são gênios. Acho muito injusto chamarem o Macalé de maldito, mas no Brasil os gênios são rotulados de malditos, comunistas, subversivos, uma herança da ditadura”, diz.

PERSONALIDADE
Com produção de Thiago Marques Luiz, “Negra Melodia” encadeia músicas como “Anjo Exterminado”, “Começar Pelo Recomeço”, “Onde o sol bate e se firma”, “Pano pra Manga”, “Vale Quanto Pesa”, “Mal Secreto”, “Divina Criatura”, e a teatral “Soluços”, onde a intérprete se esbalda entre atriz e cantora. Zezé tem ainda considerações a fazer sobre os ‘malditos’ da música brasileira, como “Cassiano, Itamar Assumpção, Walter Franco”, cita. “Eles têm muita personalidade. Nunca desistiram, nunca viveram em função de rótulos ou apelaram para algo mais comercial. Não cederam e se mantém honestos e firmes em relação à sua arte”, elogia. Com 10 títulos na discografia oficial, entre participações e DVD, a trajetória de Zezé no meio começou há quase 50 anos. “Sempre sonhei em ser atriz e cantora. Fui crooner em São Paulo das boates ‘Teleco-teco’ e ‘Balacobaco’”, diverte-se ao relembrar o nome das casas noturnas.

Quando começou a dedicar-se também ao teatro, e posteriormente ao cinema e à televisão, tudo ficou “um pouco cansativo demais”, recorda. “Tinha que acordar cedo e cantava até tarde. Não dava”, arredonda. Com o sucesso do longa-metragem “Xica da Silva”, as primeiras perguntas nas entrevistas foram: “Quais os seus próximos planos?”. Zezé não se fez de rogada e tascou logo de cara. “Quero cantar!”, rememora. “Mas não tinha infraestrutura. Não conhecia compositores, produtores, gravadoras. Não tinha um repertório. Naquela época vivíamos em tribos. Se você era da música, convivia com o pessoal da música, e assim respectivamente com o pessoal do teatro, cinema, televisão, então eu dei uma misturada!”, gargalha. “Foi aí que o empresário Guilherme Araújo, que já trabalhava com o Ney Matogrosso, Gal Costa, Maria Bethânia, Gil, Caetano, me ouviu falar e marcou aquele tal jantar”, destaca.

HOMENAGEM
“A ideia era que eles fizessem músicas para mim, e eles escreveram canções sobre mim!”, orgulha-se agradecida. Além de “Crioula”, de Moraes Moreira, e “Muito Prazer”, de Rita Lee e Roberto de Carvalho, dedicadas a ela, da famosa introdução: “Muito prazer, eu sou Zezé/ Mas você pode me chamar como quiser”, constam no repertório peças como “Magrelinha”, de Luiz Melodia, “Trocando em Miúdos”, de Chico Buarque e Francis Hime, e “Pecado Original”, de Caetano Veloso. Outras músicas feitas em adoração a Zezé, que não entraram no disco foram a “Vitamina Z”, de Naila Scorpio e Guto Graça Mello, e “Cana Caiana”, de Rosinha de Valença e Maria Bethânia. Uma curiosidade é que Zezé nunca chegou a gravar “Vitamina Z”, já uma canção recebeu a voz da cantora, mas permanece inédita para o público. Trata-se de “Dia dos namorados”, de Cazuza.

“Hoje é dia dos namorados/Dos perdidos e dos achados/Se o planeta só quer rodar/Nesse eixo que a gente está/O amor da gente é pra se guardar”, cantarola entusiasmada o refrão da música. “É linda a canção! O Cazuza me deu pra gravar, mas eu estava sem gravadora, envolvida em alguns trabalhos temáticos. Então registrei num gravador e dei para a Lucinha Araújo (mãe de Cazuza). Ela é a única que tem a versão, num cassete”, declara. Zezé conta que conheceu Cazuza num aniversário de Sandra de Sá, comadre do compositor, e que saiu algumas vezes com ele e Bebel Gilberto para bares, mas que nunca chegaram a ser muito próximos. Sobre o plano de resgatar essa gravação Zezé confessa que ainda não tinha pensado, mas que não deixa de ser “uma ideia ótima”.

MÚSICA
Zezé tem uma trajetória marcante nas artes brasileiras. As músicas em sua homenagem a comprovam. Afinal ela é um símbolo de força, descontração e sensualidade, e admite que, no seu caso, especialmente com Xica da Silva, “pessoa e personagem se misturam”. Embora tenha se dedicado a maior parte da carreira à atuação, a ligação com a música é igualmente forte. “Ouço música desde a barriga da minha mãe. Meu pai é músico, violonista, muito dedicado. Ele ficava horas no violão. Tinha um grupo de chorinho, que ia sempre lá em casa”, reflete saudosa. Já a mãe, costureira, também foi importante nessa formação. “Eu a ajudava no ateliê que também funcionava lá em casa, costurávamos ouvindo rádio. Uma música popular brasileira maravilhosa! Cauby Peixoto, Ângela Maria, Emilinha Borba, Marlene, Nora Ney, Helena de Lima”, enumera. “O dia inteiro com o rádio ligado”, admite Zezé, que em 2000 lançou disco e show em homenagem a uma de suas cantoras preferidas, Elizeth Cardoso, em “Divina Saudade”, utilizando o apelido pelo qual a intérprete era chamada.

“Tudo isso funcionava num conjuntado no Leblon”, relembra Zezé Motta. “Um dia, ao mostrar pro meu pai uma música da Helena de Lima, que eu tinha ouvido no rádio umas três vezes no máximo, ele me disse: ‘essa música é muito difícil, tem uma harmonia complicada!’”, rememora. “Ou seja, foi o meu pai que me descobriu cantora, disse que eu era muito afinada”, afirma Zezé. E pelo visto não estava errado. Não, de jeito nenhum, não estava errado. Daí, uma pequena discussão se seguiu em casa. “Minha mãe queria que eu fosse estilista, como ela, na época costureira era estilista, e o meu pai queria que eu fosse cantora”. E o ganho maior, sem dúvida, foi para a arte, que ganhou com a presença marcante e talentosa de Zezé Motta em quaisquer que fossem os palcos. E pra quem duvidar ela é capaz de costurar música, cinema e teatro.

CINEMA
Uma das músicas que mais refletem o espírito irreverente e amoroso de Zezé Motta está presente em seu primeiro álbum. “Rita Baiana”, de Geraldinho Carneiro e John Luciano Neschling foi composta para o filme “O Cortiço”, com direção de Francisco Ramalho Júnior, em que Betty Faria vivia a protagonista. Zezé se identificou de imediato com a personagem da música, por seu caráter “alegre e divertido”, relata. Em relação à sensualidade nas artes brasileiras, indica o livro do pesquisador musical Rodrigo Faour, “A História Sexual da MPB”, e afirma que nunca fez “nenhum esforço, nem tinha a proposta” de parecer sensual. “Tudo foi feito de forma muito natural, faz parte”. Já outra questão que a acompanhou durante a carreira é acompanhada com indignação. Lamenta os recentes episódios de racismo no futebol. “Parece que demos mil passos pra trás, mas essa é uma questão que nunca foi inteiramente resolvida”, assinala.

Nesta luta há anos, Zezé não parece disposta a desistir da bandeira. “Temos que continuar denunciando e debatendo. Nestes 50 anos de carreira sinto mudanças, senão já tinha desistido. A presença do negro, por exemplo, na mídia, mudou bastante. Antigamente ele só anunciava produtos de limpeza, estava relegado a papéis secundários na teledramaturgia. Existe uma preocupação. É até importante ressaltar o porquê aceitei esse papel de empregada na nova novela das seis. Minha luta é pela diversidade de papéis para o negro. Nesses anos todos atuei como governanta, protagonista, empresária, milhares de personagens, e tudo com muita dignidade. As pessoas vão entender no decorrer da novela. É um personagem que não é protagonista, não é central, por isso chamo de participação especial, mas acho que as pessoas irão gostar”. Vindo de Zezé Motta, não tem porque duvidar.

DISCOGRAFIA
1975 – Gerson Conrad e Zezé Motta
1978 – Zezé Motta
1979 – Negritude
1980 – Dengo
1984 – Frágil Força
1987 – Quarteto Negro (com Paulo Moura, Djalma Correia e Jorge Degas)
1987 – La Femme Enchantée (DVD)
1995 – A Chave Dos Segredos
2000 – Divina Saudade
2011 – Negra Melodia

8 ZEZE  MOTTA - credito Paula Klien baixa

Raphael Vidigal

Fotos: Rogério Ehrlich e Paula Klien, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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