Entrevista: Passoca, o violeiro da vanguarda

“olhe a luz nas tábuas, a mesma que incendeia as árvores lá fora. A tarde nas tábuas. Deixe que lhe penetre a densa espera do chão.” Ferreira Gullar

Passoca

Marco Antônio Vilalba, apesar do apelido popular, não se encontra em qualquer banca. Um dos ditos que profere talvez ajude a resolver o enigma. “Toda arte tem que ser experimental”, diz. Passoca, compositor, cantor e violeiro, tem um trabalho associado tanto à música caipira quanto à vanguarda paulista. Natural de Santos, formou-se em arquitetura na faculdade de São José dos Campos, onde começou a construir o caminho que culminou no mais recente disco, “Suíte Paulistana”, de 2012, uma ode à cidade de São Paulo quando de seu aniversário de 458 anos.

“Conheci Arrigo Barnabé na década de 1970, através de uma amiga em comum”, relembra. Nesta época, Passoca tocava na banda “Flying Banana”, que lançou um disco em 1977, e também abriu show para o compositor cearense Ednardo, antes de lançar o primeiro trabalho solo, “Que Moda!”, com composições que já refletiam o espírito rural-urbano de sua obra, onde constavam parcerias com Renato Teixeira e clássicos de Hekel Tavares e Joracy Camargo, tudo sob a ótica pouco ortodoxa do entrevistado. “Minhas influências começam na era do rádio, de lá pra cá passou muita gente”, avisa.

POPULAR
Pela estrada do popular cruzaram o caminho de Passoca nomes como Tom Jobim, Chico Buarque, João Pacífico e Noel Rosa, que diretamente o influenciaram. Essa relevância pode ser notada nos laços de família do homem da viola. “Encontrei-me com a Vânia Bastos quando ela cantava com o Arrigo Barnabé na banda ‘Sabor de Veneno’, em 1980. Casamos e tivemos dois filhos, a Rita, que é cantora e compositora e o Noel, que é baterista”, confidencia. “Sonora Garoa”, disco de 1984, trazia composição de Arrigo feita para o amigo, “Sinhazinha em chamas”.

Além disto, a faixa que dava nome ao álbum, de letra poética e delicada (dos versos: “O radinho grita com voz metálica/uma canção/sonora garoa/sereno de prata/sereno de lata/reflete o sol bem no caminhão”) foi referendada através dos anos como uma das mais inspiradas composições de Passoca. Outras referências se viam ali presentes no instrumental de raiz sertaneja, como “Renato Andrade e Tião Carreiro”, cita. Já a base da formação musical do compositor está pautada nas lições aprendidas com “João Gilberto, a bossa nova e a música caipira”, afirma.

ERUDITO
Passoca interpreta poema de Ezra Pound, Ferreira Gullar em música de Villa-Lobos (“O Trenzinho Caipira”), Alzira Espíndola, Paulo Vanzolini, Dorival Caymmi, Cornélio Pires, Alvarenga & Ranchinho, Cascatinha & Inhana, João Pacífico, Raul Torres, Inezita Barroso e tantos outros. Tudo isto sem chegar atrasado à estação. Da clássica “Tristeza do Jeca”, de Angelino de Oliveira, à “Viola Quebrada” de Ary Kerner e Mário de Andrade. O gosto por diversas modalidades não se limita à canção musical. “Leio um pouco de tudo, poesia, romance, crônica, história da arte e história em geral”, afirma.

Também gosta “muito de pintura”, e talvez seja por isso que escolhe uma expressão nascida no meio para avaliar os compositores eruditos de sua preferência. “Sou fã dos impressionistas, Debussy, Ravel, etc., etc., etc.,” recorre à eternidade que a literatura permite. Quanto a cinema e teatro se denomina “eclético”. E tem a própria percepção sobre o momento atual da música brasileira. “Tem uma nova geração fazendo música boa, fora da mídia oficial. A música ruim de antigamente era melhor do que a música ruim de hoje”, sublinha.

TRAGICÔMICA
Além de audaz praticamente Passoca é, também, um estudioso da música. Foi esse tipo de atividade que o permitiu lançar trabalhos como “Breve História da Música Caipira”, de 1997, acompanhado de livro, e se embrenhar nas composições guardadas no baú do autor de “Trem das Onze” e “Saudosa Maloca” para lançar, no ano 2000, “Passoca canta inéditos de Adoniran Barbosa”. Neste CD, as 14 faixas foram geridas da mesma forma. Eram letras deixadas pelo homenageado que receberam melodias de nomes como Tito Madi, Zé Keti, Paulo Bellinati e o próprio Passoca, entre vários outros.

O gosto pela obra de Adoniran Barbosa vem por sua característica de “crônicas tragicômicas”, ressalta no jogo de palavras caro aos artistas que balizam entre o concreto e o imponderável. Entre os versos deixados sem o batuque da caixinha de fósforos por Adoniran encontram-se vertentes maliciosas em “Gulú Gulú” (como: é que o rei do galinheiro/é hoje o meu peru) e “Vai da Valsa” (que diz: eu gosto de mulher bonita/mas quando ela está sem calça/comprida), e momentos de graça ingênua, por exemplo em “Currupaco” (você parece relógio de repetição/ vê se arranja outra profissão).

CHAPÉU
Com um chapéu panamá e um sabiá amarelo sobre a cuca, é assim que Passoca aparece na capa do disco “Sabiacidade”, de 1995, onde aborda repertório que tem a sinuosidade do voo dos pássaros e das avenidas das metrópoles. E é assim que ele se apresenta em cantos e com cantos diversos do Brasil. Algumas vezes na companhia de companheiros dos palcos da vida e da arte, como “Premeditando o Breque”, Tetê Espíndola, “Língua de Trapo”, Almir Sater, Roberto Corrêa, Paulo Freire, Renato Borghetti, Marco Pereira, Maurício Carrilho, Joyce, Cida Moreira, Ná Ozzetti e Suzana Salles.

Como quem dá uma caneta no destino, Passoca, cuja origem pode ser indígena, oriental, europeia ou africana, e que participou em 1998 e 2004 dos projetos “Violeiros do Brasil”, além de ter sido indicado em 2013 ao Prêmio da Música Brasileira nas categorias de música regional e melhor álbum, atual morador da cidade interiorana de Ribeirão Pires, em São Paulo, assina o nome com a incoerência que só aos mais sérios irreverentes se permite: violeiro da vanguarda. O resto é rabisco, não, risco.

DISCOGRAFIA
1977 – Flying Banana (com o grupo)
1980 – Que Moda!
1984 – Sonora Garoa
1995 – Sabiacidade
1997 – Breve História da Música Caipira
1998 – Violeiros do Brasil (participação)
2000 – Passoca Canta Inéditas de Adoniran
2004 – Violeiros do Brasil (participação)
2012 – Suíte Paulistana

Passoca-entrevista

Raphael Vidigal

Fotos: divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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