Arrigo Barnabé (Cantores brasileiros)

“A flor na jarra de manteiga de cacau que estava antes na cozinha, contorcida para chegar até a luz,
a porta do armário aberta porque o usei há pouco, continuou gentilmente aberta esperando-me, seu dono.” Allen Ginsberg

Clara Crocodilo

Turva felicidade a de Arrigo Barnabé. Essa que se agarra às ostras, que se agarra às algas. Ainda assim, espontânea. Ainda assim, clandestina. Tal e qual uma flor de Clarice Lispector, que ao “se erguer, parece quebrar-se”.

Quando emerge do pântano, sob o relento do olhar de crocodilos, espia uma luz clara que tamborila de instrumentos multicoloridos: ali está Schoenberg, e sua escala de arco-íris sem tom.

Com o olhar de Mary Shelley, sua “pele encarquilhada, lábios negros e retos” urde o grito de Frankenstein, boca retorcida do medo, apupos e aplausos no Festival Universitário de 1979, Diversões Eletrônicas, Silvio Caldas e Orestes Barbosa sob a ótica de luminosos fórmicos.

Rufem os tambores, há uma missa a ser celebrada para Arthur Bispo do Rosário, o artista plástico, que se confundiu louco, e outra missa a ser celebrada para Itamar Assumpção, o louco que se confundiu artista, e assim sejam todas as distorções de imagem, eternas e sagradas, na extrema unção da irrealidade.

Abre-se o piano, arrasta sua longa cauda, guarda as jóias na “caixa de ódio” de Lupicínio Rodrigues, o passarinho que viu a raiva consumar o amor com as garras de um gavião. E arranha a garganta de Cássia Eller, a cantar o “Dedo de Deus”, e alivia as cordas de Tetê Espíndola, a acompanhar suas peraltices transformistas, e dueta com Ney Matogrosso, em espetáculo de androginia, Dionísio e breu do mundo.

Clarão mágico de influências rodantes: não pergunte, Skylab, quem matou nosso personagem, ouça a língua de Caetano Veloso: acrilírico. Consonantes telepatias digestivas. Mastiga, mastiga, até encontrar Arrigo, até insurgir a beleza da estranheza sem nenhum acorde, sem nenhum tom, nenhuma vogal, nenhuma consoante. Escorre o sabor de veneno. No porão, as teias trazem Tom Waits.

Do caos vem a criatura, irrestrita criatura de paz nesse labirinto. Quero “ver se você consegue me seguir neste labirinto”. Tubarões voadores, sou Clara Crocodilo. Tubarões voadores, é o terreno espírito. Tubarões voadores, de repente Orson Wells, trilhas, locuções, para todo um filme, uma única tomada, o último rife. “Pois te entender é o ato de destruir” Arrigo Barnabé.

Nascido em Londrina, compositor com formação erudita, que teve fundamental contribuição para a chamada ‘Vanguarda Paulista’, movimento que desmatizou (arredou as cores, inovou) da música brasileira, a partir de sua iniciativa teatral, inspirada em histórias em quadrinhos e no dodecafonismo, para remodelar o tom da tradicional canção.

Discos:
1980 – Clara Crocodilo (com a banda Sabor de Veneno)
1984 – Tubarões Voadores
1986 – Cidade Oculta (trilha sonora)
1987 – Suspeito
1992 – Façanhas
1997 – Ed Mort (trilha sonora)
1998 – Gigante Negão
1999 – A Saga de Clara Crocodilo
2004 – Missa In Memorian: Arthur Bispo do Rosário
2007 – Missa In Memorian: Itamar Assumpção
2008 – Ao Vivo em Porto (com Paulo Braga)
2012 – Caixa de Ódio (homenagem a Lupicínio Rodrigues)

Arrigo Barnabé

Raphael Vidigal

Publicado originalmente no jornal “Hoje em Dia”, em 22/09/2011.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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