Entrevista: O Teatro Sonoro de Vânia Bastos

“A luz do sol pingava sobre a casa como tinta dourada em uma jarra artisticamente decorada, e os pontos de sombra que caíam como sardas aqui e ali apenas intensificavam o rigor do banho de luz.” F. Scott Fitzgerald

Vania-Bastos

Arrigo Barnabé e Edu Lobo podem não ter nada a ver um com o outro, ao olhar primeiro e desatento. Mas numa coisa eles concordam: Vânia Bastos. A cantora paulista, nascida no interior, em Ourinhos, começou a carreira acompanhando o paranaense na banda “Sabor de Veneno”, com o lançamento em 1980 do histórico álbum “Clara Crocodilo”, e dedicou o último trabalho registrado em disco ao compositor carioca identificado, sobretudo, com a bossa nova.

Com discografia de onze títulos autorais, sem contar as participações em bandas e projetos especiais, e mais de trinta anos de carreira, Vânia não para de inovar. Um exemplo recente é a criação de personagem interpretada por ela durante espetáculos. “Eu estava esquentando a voz no camarim e tinha um eco bem bom, a voz ia longe! Comecei a brincar com ‘Upa Neguinho’ (de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri) usando uma voz erudita, de farra! O Ronaldo Rayol (arranjador e violonista) achou que era alguma cantora alemã ensaiando ópera! Rimos muito quando descobriram que era eu, e então o Passoca (cantor e compositor), deu a idéia do nome: Ardah, de Eduarda, e Wolff, que é lobo, em alemão”, explica.

TEATRAL
Além da evidente “homenagem” a Edu Lobo, Ardah Wolff – a partir da qual Vânia se investe de cachecol, óculos de grau e chapéu em cena – revela a porção teatral da cantora. “A música é uma linguagem em si mesma, mas colabora e convive muito bem com a dramaturgia. As trilhas sonoras são por vezes definidoras de muitas situações, na vida real, inclusive”, afere. E essa não é a primeira nem a única vez que a intérprete exercita o lado atriz.

“Gostei muito de me transformar na voz da Cobra Celeste, adoro brincadeiras desse tipo, volto ao tempo do Arrigo”, relembra ao comentar a participação no CD com músicas do seriado infantil Castelo RÁ-TIM-BUM, lançado em 1995. Imersa no universo das histórias em quadrinhos ao lado do companheiro de “Vanguarda Paulista” – movimento capitaneado por Barnabé, Luiz Tatit, e Itamar Assumpção, entre outros – Bastos retorna com freqüência ao repertório em que dá vida a criaturas enigmáticas (canções como “Lenda” e “Sabor de Veneno” volta e meia figuram na lista). “É a essência da minha história com o Arrigo. Merece um belo registro”, opina sobre “Música da Grande Cidade”, projeto que já percorreu capitais como Porto Alegre e São Paulo e tem planos de chegar ao DVD. “É um show que, de tempos em tempos, retomamos”.

ELEGÂNCIA
E não param por aí as novidades da intérprete. Para 2014 pretende também registrar em áudio-visual a apresentação em que canta músicas de Vinicius de Moraes, reverenciando-o em seu centenário. “Chega de Saudade do Poetinha” é, ao lado de “40 anos sem Pixinguinha”, onde canta com o baixista e arranjador Marcos Paiva, o atual divertimento e mimo de Vânia Bastos. “Essas músicas são eternamente lindas, é uma responsabilidade e uma delícia poder cantar aquilo que fala diretamente à alma de todo mundo”, elogia.

Escolada no universo das canções de Tom Jobim – gravou, em 1995, disco dedicado ao maestro – destaca a elegância das palavras escolhidas por Vinicius. “A emoção vem à tona com a maior facilidade, para quem canta e ouve, e, além disso, só teve parceiros ilustres, conviveu com a nata, Chico Buarque, Baden Powell, Toquinho”, enumera. Sobre quem tem a data de aniversário definida como o “Dia Nacional do Choro”, Vânia é incisiva: “Pixinguinha é outro Deus da música brasileira. Suas melodias são reverenciadas nos quatro cantos do planeta!”. E comenta a maneira com que tem se apropriado das criações do flautista e saxofonista. “Temos uma formação de banda diferenciada. É um espetáculo sofisticado e tremendamente popular, ao mesmo tempo, bem como é Pixinguinha, só que sob uma nova ótica”, confidencia.

VANGUARDA
Outra mistura recorrente na carreira de Vânia Bastos se dá entre o popular e o clássico. “A música erudita mergulha nas profundezas dos sons, nas possibilidades harmônicas, vai ao extremo da criação”, aponta, e examina, por outro lado, as características da canção. “Algo mais cantável, com ritmos dançáveis, já é uma simplificação, ou não…”, brinca. Da fusão entre a dodecafonia e o rock proposto pela Vanguarda Paulista, a cantora tirou lições que lhe são caras até hoje. “Existe a música popular sofisticada, e a erudita simples. Eu namoro as duas com uma paixão muito, mas muito grande! No fundo tudo pertence à Música”, vaticina.

Do instante cultural brasileiro que apresentou a toda uma geração obras como “Diversões Eletrônicas”, “Tubarões Voadores”, “Infortúnio” e “Neide Manicure Pedicure”, a artista exalta: “Essa música ‘diferente’ fez história, pois veio para não compactuar com o sistema vigente. Isso tem um preço, lógico. Não aconteceu aquele sucesso fácil”. Ainda assim a trupe se consagrou a ponto de obter o reconhecimento de astros da MPB anteriores e posteriores a ele, como Caetano Veloso (gravou “Janete” de Arrigo Barnabé) e Zélia Duncan (dedicou o recente álbum “Tudo Esclarecido” à obra de Itamar Assumpção). “Havia um bocado de gente querendo consumir outra coisa que não a mesmice musical, daí o imenso público nos shows, mesmo a gente não tocando na rádio”, indica a cantora, que resume: “Foi um movimento ímpar, uma experimentação de sonoridades até ali inexistente na música brasileira”.

PAULISTA
A formação acadêmica adquirida na USP – embora não tenha concluído o curso – é um dos trunfos que a entrevistada utiliza para desfilar com desenvoltura entre acordes e versos. “Tomei contato com corais, vozes, orquestras, música erudita, experimental, contemporânea, atonal, descobri até que poderia ser uma ‘soprano’”, e cristaliza: “Foi um mundo totalmente novo que se abriu para mim”, confessa.

Dentre os favoritos na seara abordada acima, cita: “Mahler, Debussy, Ravel, Stravinsky, Schumann, Bartók, Berio, Villa-Lobos, e tantos outros! Gosto de vários”, admite. A respeito do suposto papel da música experimental na arte e na sociedade, aquela que alcançou o maior sucesso ao lançar “Paulista” (dos versos “Se a avenida exilou seus casarões/Quem reconstruiria nossas ilusões?/Me lembrei/De contar pra você, nessa canção”) de Eduardo Gudin e Costa Netto; apresenta o próprio sentido. “O viés da procura, mesmo que não dê em nada prático. O ser humano não tem limites e é parte da condição a eterna busca do ‘novo’. E os sons abrem almas, entendimentos, questionam”, averigua.

VOZES
Dona de um timbre de voz cristalino e uma afinação aplaudida pelo mestre Cauby Peixoto (ele avisa: “A voz mais afinada que já ouvi”) e o sempre presente Arrigo; este utilizou um poema de João Cabral de Mello Neto para expressar tal sentimento (“Eu diria que falavas de uma sala toda de luz invadida, sala que pelas janelas, duzentas, se oferecia a alguma manhã de praia”), Vânia apresenta os ases de seu baralho no que tange a cantoras influentes. “Gal Costa, Cathy Berberian, Elis Regina, Tetê Espíndola, Ella Fitzgerald, Diana Krall e Evinha”, diversifica, sem esquecer das “paixões da minha infância: Rita Pavone e Wanderléa”, arredonda.

O afago do mais famoso intérprete de “Conceição” (samba-canção de Jair Amorim e Evaldo Gouveia) ocorreu durante ensaios do DVD em comemoração a 60 anos de carreira, onde os dois dividiram microfones para cantar “Falando de Amor” (de Tom Jobim). “Um luxo! Cauby é um fenômeno, uma pessoa generosa e muito carinhosa. Ser convidada por ele foi uma honra imensa”, deleita-se. De encontros ilustres a rechearem a trajetória, Vânia não se farta, e envaidecida conta. “Tenho a sorte de ter gravado com ícones da nossa música, como Hermeto Pascoal, Ivan Lins, Caetano Veloso, Edu Lobo, Francis Hime, Lô Borges, Milton Nascimento”.

MINAS
A relação com os mentores do “Clube da Esquina” começou à distância. A menina ainda descobria o mundo das notas musicais. “Fiquei fascinada na minha adolescência ao ouvir àquele LP. A família do meu pai é de Januária (cidade do interior ao norte de Minas Gerais) e associei tudo, os caminhos, as estradas para as férias com a música maravilhosa que partia de Belo Horizonte”, rememora. O fecho para este sonho de criança veio em 2002, época comemorativa aos 30 anos do movimento, quando a intérprete teve a oportunidade de dar a sua versão aos fatos. Entoou, a convite do produtor musical Marco Mazzola, as canções “Nada Será Como Antes”, “Paisagem Na Janela”, “O Trem Azul”, “Nascente”, e muitas outras.

Porém antes, em 1999, cantou, no aclamado “Belas & Feras”, as compositoras da sua preferência. “Adoro Angela Ro Ro e sua voz rouca, suas belas músicas e letras. Igualmente sou apaixonada por Marina Lima e as parcerias com o irmão Antônio Cícero, fora a maneira singular de entrar na música brasileira, todo aquele jeito”, considera. Juntam-se ao vigoroso time contemplado no trabalho os nomes de Adriana Calcanhotto, Fátima Guedes, Joyce, Rita Lee, Daniela Mercury, Lucina, Dona Ivone Lara, Baby do Brasil, Anastácia, Klébi Nori e Chiquinha Gonzaga. E ainda sobra tempo para discursar sobre as musas da dor de cotovelo. “Maysa é um mito, com interpretações únicas e arrojadas. Dolores Duran é incrível, tão novinha e fez músicas que são eternas. Tive o privilégio de gravar sua última composição, ‘Noite de Paz’”, orgulha-se.

INTUIÇÃO
Entre presente e passado, com olhadela para o futuro, Vânia estende os braços para as palavras de “Adélia Prado, João Ubaldo Ribeiro, Tolstoi, Machado de Assis, Gabriel García Márquez e Érico Veríssimo”, no concernente à literatura. Analisa o provavelmente mais antigo ritmo brasileiro, base de todos os outros. “O choro é praticamente a erudição que foi para o popular. A profundidade, a destreza, a precisão, a métrica, as melodias e harmonias sofisticadas devem ser continuamente apreciadas, saboreadas, choradas”, diz em metáfora. E palpita sobre o que há de moderno no atual cenário da música brasileira e internacional. “Temos uma fartura de talentos! Gosto muito da ainda menina, porém fera, Esperanza Spalding (contrabaixista e cantora de jazz americana), do Filipe Catto, da Tulipa Ruiz, da minha filha Rita Bastos (que se prepara para gravar o primeiro CD autoral) e da Luz Marina (da prole de Alzira Espíndola)”, sugere.

O critério adotado nas escolhas artísticas tem aura de inconsciente. “Não tenho, confio na minha intuição, ainda mais musical”, segreda. Dos outros, a palavra de Edu Lobo, para ela “um dos maiores compositores vivos”, talvez auxilie neste garimpo. “Não falo, porque não há necessidade: uma cantora de primeiro time, não precisa de elogios”, informa. Com respeito ao septuagenário compositor, o arremate fica a cargo de Arrigo Barnabé, que assume chorar ao ouvir Vânia Bastos: “Voz Vestida de Luz”.

DISCOGRAFIA
1987 – Vânia Bastos
1989 – Eduardo Gudin & Vânia Bastos
1990 – Vânia Bastos
1992 – Cantando Caetano
1994 – Canta Mais
1995 – Canções de Tom Jobim
1997 – Diversões Não Eletrônicas
1999 – Belas & Feras
2002 – Vânia Bastos canta Clube da Esquina
2007 – Tocar na Banda
2010 – Na Boca do Lobo

Vania-Bastos-entrevista

Raphael Vidigal

Crédito das fotos: Marco Máximo e Altiery Monteiro, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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