“Rompe a amargura até transmutar em ternura
Só a arte salva de nossos monstros, a arte é cura,
Veneno e antídoto, só ela, única, perdura em nosso peito” Maíra Baldaia
“Minhas principais influências estão nas ruas, nas mulheres do meu dia a dia, na resistência nossa de cada dia, na ancestralidade que toca o meu corpo e forma minha identidade, nos amores e nos aprendizados, na natureza e nos movimentos que ela nos propõe, nas paisagens e passagens de tempo, nas cores, na liberdade e, principalmente, nas estradas e nos novos olhares que elas nos despertam”, é com estas palavras que Maíra Baldaia se apresenta, e não há ninguém melhor do que ela para tentar o entendimento de si própria, sem pretender, com isto, a limitação. O que Maíra procura é liberdade. Mineira de Itabira – aonde, por acaso, também nasceu Carlos Drummond de Andrade – a artista já levou seu canto e sua poesia para Portugal, Espanha, Alemanha e Estados Unidos. Mas que com a aparência não se engane, Maíra, que também é atriz, está longe de deslumbrar-se com colonizadores. Suas raízes estão fincadas na África e no Brasil, que, com reverência, ela reinventa nas músicas.
“POENTE e outras paisagens” é o primeiro álbum da cantora. Lançado em dezembro de 2016 possui somente canções autorais. “No meu disco, que é todo autoral, eu tenho entre as parceiras de composição somente mulheres negras que são minhas contemporâneas na cena musical em Belo Horizonte”, sublinha Baldaia. Entre elas lá estão Verônica Zanella, Talita Barreto, Elisa de Sena, Eneida Baraúna e Nath Rodrigues, além de outras composições que Maíra assina sozinha. Além de Verônica, a banda, que sempre a acompanha, conta ainda com Débora Costa e Larissa Horta. A direção musical é de Clayton Neri e a produção ficou a cargo de Camila França. Entre as participações especiais lá estão Bia Nogueira, Alysson Salvador, Caetano Brasil, Nath Rodrigues e Maurício Tizumba, que a entrevistada define como “um mestre na minha trajetória”. Por aí também se costura a identidade do álbum. “Todas as participações são artistas negros de Minas Gerais, que possuem trabalhos que admiro e que dialogam com o que eu acredito”, vaticina Maíra. É só o começo.
REPRESENTATIVIDADE
A postura de Maíra Baldaia já responde sobre a importância da presença da mulher negra no cenário da composição musical, como ela mesma aponta. “A começar pela importância de se ter representatividade, seja na arte ou nos espaços de poder, para que venham mais mulheres negras e ocupem os espaços que são seus pura e simplesmente. E é importante também pensar que a mulher em si já vem lutando para conquistar seu espaço na música, assim como músicos e musicistas negras. Há um movimento potente que mostra que as mulheres são capazes e criadoras de seus trabalhos, que mostra uma voz potente da mulher na arte”, ratifica. Além da questão de gênero, Maíra aprofunda o debate para outras questões graves e de bandeiras preponderantes. “A mulher negra tem ainda um espaço mais reduzido nesse contexto, por todas as questões e diferenças que tangem ao feminismo negro e a construção social da nossa sociedade que é patriarcal e racista”, argumenta.
Canções intituladas “Insubmissa”, “Negra Rima” e “Axé”, que compõe o álbum de Maíra, garantem uma boa pista de que seu recado veio para ser ouvido e desconstruir paradigmas como aqueles a que ela se referenciou logo acima. “Isso vem mudando e sendo reconstruindo graças a muita luta, luta que começou há muito tempo e que nos permite falar por nós mesmas e deixar ou fazer soar nossas vozes. Hoje a rainha da música pop internacional é uma mulher negra (referência à cantora Beyoncé) e isso é maravilhoso! O tempo do medo acabou, as mulheres cis ou trans, sobretudo as mulheres negras, não vão mais guardar suas vozes até que todas sejam livres. É por direitos iguais que reivindicamos os espaços que também são nossos, seja na arte ou qualquer outro setor da sociedade”, garante, antes de desfiar o rosário de suas influências musicais. “Titane, Sérgio Pererê, Maurício Tizumba, Elza Soares, Mônica Salmaso, Djavan, Caetano Veloso, Beyoncé, Mari Kavien, Aline Frazão, Deh Mussulini, Rubel, Anna Tréa, LaBaq, Phill Veras, Liniker, François Muleka e meus companheiros do coletivo IMuNe – Instante da Música Negra”.
CENÁRIO
Se esses artistas influenciaram a trajetória de Maíra, “não é necessariamente pelo estilo, mas por apresentarem uma arte que quebra barreiras e que me toca de alguma forma”, afiança ela em direção ao voo próprio. Formada em música na “Bituca – Universidade de Música Popular” e em teatro através da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a desenvoltura e diversidade certamente aparecem entre as características da arte de Baldaia, no que a palavra “formada” – que vem de fôrma, como explicitava Rubem Alves, outro mineiro, este da Boa Esperança – parece pouco afeita à personalidade de Maíra. “Passeio muito por vários segmentos artísticos, estudei cinema e um pouco de dança afro, pinto, escrevo poesia. Tudo isso forma a artista que sou no meu palco e a artista que apresento neste meu primeiro disco”, reflete. Tal desprendimento e liberdade puderam ser conferidos no espetáculo de lançamento do álbum, quando Maíra conferiu ao público a função de definir o valor do ingresso. O evento, na “Casa do Baile”, teve ainda um belo pôr do sol.
“Eu percebo que, apesar de toda a tendência formadora de opinião que a grande mídia detém e que acaba por influenciar o que vai para as rádios e ditar o que fará mais sucesso no cenário musical, há um forte crescimento da música independente e da chamada nova MPB. Muito pela força cada vez maior das redes sociais que aproxima e ao mesmo tempo pulveriza a classe musical das pessoas, a música independente tem trilhado um percurso que só cresce e nos apresenta muita música boa diariamente. Todos os dias eu descubro um som novo através da internet e isso é bem interessante. Estamos em um tempo de muita informação e muita produção. Vejo um processo humano e sem barreiras no cenário independente”, infere Maíra sobre este cenário que, para além de estar inserida, ela ativamente participa, e convida ao gesto da troca e da comunhão. Não por acaso, o primeiro sol poente de Maíra nasceu a partir deste princípio, como uma expressão particular e sincera, mas compartilhada e dividida. As doze faixas do álbum estão disponíveis nas redes.
PAISAGENS
Gravado, mixado e masterizado no Estúdio Engenho, em Belo Horizonte, por André Cabelo, “POENTE e outras paisagens” foi realizado a partir de investimento próprio da artista, “mas só foi possível devido a várias parcerias que tive abraçando o projeto”, detecta Maíra. “Para o lançamento eu fiz uma campanha e contei novamente com várias parcerias e apoiadores. Realizei o lançamento dentro da programação do IMuNe – Instante da Música Negra, coletivo do qual faço parte e que divulga e fomenta a música produzida por artistas negros”, conta. Se a trajetória teve percalços, a força e a determinação em assumir essa arte para o mundo prevaleceram. “Lançar um trabalho de forma totalmente independente sempre é desafiador, ainda mais quando estamos no processo de aprender e descobrir quais caminhos percorrer, como foi o meu caso. Muitas dificuldades foram sanadas a partir da troca de experiências e das parcerias, a força do coletivo é algo fora do comum. Assinei a direção artística do disco e é natural que sendo um disco solo fale muito de mim, foi um passo importante na minha carreira e nessa minha caminhada na arte que se inicia, é meu cartão de apresentação e já penso nos próximos discos”, planejamento que tem tudo para alegrar aos fãs que por aí já existem.
E se os próximos passos começam a serem traçados, fica claro que nenhum deles é dado no escuro, há toda uma concepção por trás do sol poente de Maíra Baldaia, o que ajuda a criar os climas e as atmosferas que levam direto da consciência ao coração do ouvinte, desde que ele se entregue ao disco, essa uma premissa da arte feita com sentimento. “Eu tenho uma maneira muito particular de pensar a música que passa também por um lugar da dramaturgia teatral, por exemplo, eu quis criar uma sensação de passagem de tempo trazendo um percurso que vai do amanhecer ao anoitecer, tendo o ápice no blues ‘Poente’”, considera Maíra. “Pessoalmente, vejo a arte como um instrumento transformador, seja num campo mais lúdico mudando estados de ânimo a um campo mais social e político ecoando nossas vozes, trazendo discussões, trazendo mudanças na sociedade. A minha arte não se separa da pessoa que sou e do lugar que ocupa no meio em que vivo, mesmo que eu não tratasse disso nas músicas a minha presença na arte já seria representativa para determinados grupos e minorias. Eu trabalhei por anos no projeto sócio cultural ‘Meninos de Minas’ e pude sentir de perto o que a arte é capaz de fazer na vida de alguém, desde a autoestima de se reconhecer, de assumir os cabelos, há também aquele de entender o sentido político de ser quem é”, diz.
ARTE
Antes de lançar “POENTE e outras paisagens” Maíra Baldaia ouviu muito os discos “CIRCULADÔ”, de Caetano Veloso, “Sá Rainha”, de Titane, e também Dércio Marques, Coral Afro Família Alcântara, Michael Jackson e Cássia Eller, por influência dos pais, que os escutavam em casa. São essas as primeiras lembranças musicais. Daí a decidir ser cantora, a memória falha, ou melhor, encontra outras paisagens. “Não sei quando decidi ser cantora e compositora, de certa forma sempre estive em contato com a arte, minha brincadeira preferida era criar músicas no meu radinho gravador de fita e ouvir depois, passava horas assim. A primeira vez que cantei foi aos cinco anos em participação no CD ‘Nem Tudo É Verdade’ do compositor Tony Primo. A voz é meu instrumento principal, mas toco instrumentos de percussão afro mineira como tambor, patangome, gungas e também estudo violão”. Se o início é incerto e a finalidade da arte é – nas palavras de Oscar Wilde – criar um estado de alma, a de Maíra Baldaia está aí, para quem quiser ouvir, iluminada de sol.
Raphael Vidigal
Fotos: Jenfs Martins.