Entrevista: Dulce Quental lança disco de inéditas com músicas antigas

“Todo mundo é parecido, quando sente dor
Mas nu e só ao meio-dia, só quem está pronto pro amor” Dulce Quental

Dulce-Quental

Dulce Quental prepara uma surpresa. Um disco de músicas inéditas com gravações antigas. Habituada ao paroxismo, a cantora de carreira espaçada retorna ao mercado fonográfico em grande estilo. Um dos motivos da ausência sentida encontra-se na incursão por outras áreas do conhecimento artístico, em especial a literatura.  “Eu gosto de escrever a beça. E acho que no futuro quando estiver cansada dos palcos irei só escrever. Tenho um livro de crônicas publicado e um romance (na ordem ‘Caleidoscópicas’ e ‘Memória Inventada’). Tudo feito de forma independente. Está por aí. Na ‘Amazon’ (empresa de vendas online). Fiquei cinco anos trabalhando nele. Mas foi muito sofrido o processo. É difícil demais escrever bem. Difícil ser simples. Ora dessas, eu volto. Estou de férias da literatura. Agora quero colocar a boca no trombone e cantar pra subir”, avisa. Como de costume, é bom não duvidar de Dulce.

“Música e Maresia” compila 11 gravações realizadas entre 1991 e 1994, período em que Quental não lançou disco, mas que mesmo assim apareceu como a compositora de sucessos da banda “Barão Vermelho”, “Cidade Negra” e de Leila Pinheiro, Simone, Anna Carolina, Roberto Frejat e outros artistas. A artista explica porque só agora a cria verá a luz do dia. “Eu sempre tive o desejo de lançar um disco com essas gravações. Estava esperando o momento certo. Mas foi preciso um empurrão de amigos e colaboradores para acontecer. A gente não faz nada sozinho. Acho também que só estou conseguindo por causa do momento da indústria. A volta do vinil. A possibilidade de um artista independente lançar seu próprio selo e distribuir diretamente através de uma plataforma digital sem o intermédio de uma gravadora”, justifica. Muitas dessas canções permanecem inéditas apenas na voz de Dulce, já tendo sido lançadas por alguns dos nomes citados acima.

AUDIOVISUAL
Além de lançar o álbum no formato vinil e disponibilizá-lo em plataformas digitais, junto de outros três discos de sua carreira por seu próprio selo, o “Cafezinho Edições”, Dulce Quental grava, no próximo dia 25 de junho, um DVD para o “Canal Brasil”, seu primeiro registro em audiovisual. O repertório deste espetáculo será pontuado por sucessos da carreira, como “Inocência do Prazer”, “Qualquer Lugar do Mundo”, “Bossa do Bayard” e as composições guardadas durante esses mais de 20 anos. Ainda sobre o processo que lhe permitiu apresentar todo esse material, a artista especifica: “Muitas dessas canções foram registradas em casa, pois computador e programas de gravação ainda estavam por vir. Essas gravações foram feitas em parte na casa do Nilo Romero (baixista, produtor e compositor, co-autor, por exemplo, de ‘Brasil’, com Cazuza e George Israel), com nada de dinheiro, e num tempo em que as gravadoras estavam totalmente de portas fechadas. Infelizmente as fitas originais se perderam, mas eu consegui salvar alguma coisa em uma espécie de pré-mix que acabou me servindo de máster”, esclarece.

Já de olho no tempo presente, Dulce dá seu palpite sobre o atual cenário da música popular brasileira. “É um momento com muita diversidade e  oferta de música, mas com pouca qualidade e autenticidade. Muita coisa igual. Ao mesmo tempo, sinto essa nova geração entrando no mercado, bem mais preparada do que a minha. Nós éramos muito amadores. Eles são tecnicamente perfeitos, mas às vezes acho que falta alguma coisa. Sangue, suor e lágrimas?”, arrisca. Guindada à fama no período auge do rock nacional, Dulce gravou o primeiro disco em 1984, como vocalista da banda “Sempre Livre”, mesmo ano em que já eclodiam na cena os títulos da “Blitz”, “Gang 90”, “Barão Vermelho”, “Legião Urbana”, “Kid Abelha”, “Lobão & os Ronaldos”, “Paralamas do Sucesso”, e artistas do porte de Marina Lima e Lulu Santos. “Acho que falta se jogar mais e correr riscos. Mas eu entendo. O mundo ficou conservador e careta. E arriscado demais pra brincar… As drogas pesadas… O sexo banalizado e ao mesmo tempo pudico. Coisas da AIDS e da barbárie que enlouqueceu o mundo”, analisa Dulce que, já em 1986 se lançava em voo solo.

INFLUÊNCIAS
Mas não pense você que Dulce caiu de pára-quedas ou chegou até aqui por acaso, embora o primeiro álbum da carreira chamasse “Avião de Combate”. “Délica”, dois anos após, trazia provavelmente os maiores sucessos da carreira, numa mistura pop e jazz que sempre caracterizou o trabalho de Quental, com sua perspectiva altamente de vanguarda e contemporânea. Gravaria, por exemplo, em 1988, músicas de iconoclastas da estirpe de Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e Arnaldo Antunes, em álbum intitulado com seu nome. “Acho que sou meio bipolar. Apolo e Dionísio. Rock ‘N’ Roll e Bossa Nova. Agora mais velha estou mais exigente. Gosto de coisas mais elaboradas. Ao mesmo tempo música boa não precisa ser difícil. Quando tem verdade é o que vale”, detecta ao relembrar seus primeiros contatos com a música. “Meu pai tinha uma enorme discoteca de  vinis de jazz. Então me formei dentro de casa através do gosto dele. Adolescente, fui a todos os concertos que podia. Via o mesmo show diversas vezes. Hermeto Pascoal, Victor Assis Brasil, Jards Macalé. Maria Bethânia, no ‘Teatro da Praia’ em Copacabana, eu devo ter visto umas dez vezes. Raul Seixas, que eu amava”, enumera.

Cantora, instrumentista, compositora e mais recentemente autora, Dulce é certamente uma das mais destacadas mulheres em seu ofício, num país que se orgulha de suas intérpretes, mas que nem sempre valoriza da mesma maneira aquelas que criam palavras e sons, exemplo observado em outra colega de Quental, essa somente letrista, Ana Terra, co-autora de “Amor Meu Grande Amor”, sucesso na voz de Angela Ro Ro. “Meu primeiro instrumento foi um sax alto. Eu queria ser o Paul Desmond, mas acabei indo parar no ‘Sempre Livre’. Acho que eu estava meio louca. Queria sair da casa dos meus pais a qualquer custo. Bancar a minha vida. Então não pensei muito e ganhei a estrada”, relembra com ímpetos de desbravadora. Nessa travessia encontrou um parceiro fundamental. “Nós nos conhecemos no Baixo Leblon, início dos anos 80. Ele acabara de voltar da Califórnia e eu de Paris. Circulávamos pelo mesmo ambiente e as nossas bandas se formaram ao mesmo tempo. Fazíamos shows nos mesmos lugares, dividíamos o palco algumas vezes. Tínhamos muita afinidade um com o outro. Ele tinha casa na ‘Fazenda Inglesa’ em Petrópolis, eu também. Quando gravei meu 3º disco pedi a ele uma canção”.

CAZUZA
Para quem não liga o nome à pessoa são de Dulce os versos da música “O Poeta Está Vivo”, em parceria com Roberto Frejat, uma das mais pungentes homenagens feitas ao “Exagerado”, ocorrida ainda em vida, salienta a artista. “Fiz essa música  um pouco por causa  de uma frase que ele escreveu e que bateu forte demais pra mim. ‘Eu vi a cara  da morte e ela estava viva’. Eu achei esse verso uma porrada. O modo como ele enfrentou todo o tratamento em Boston… Mostrei pra ele a letra, antes de ter música. Ele disse que eu estava escrevendo melhor do que ele. Não era verdade. Ele queria me fazer feliz”, recorda e defende porque não pretende realizar gravações com letras inéditas deixadas pelo amigo. “Não tenho planos de gravação póstuma. Não curto muito isso. Minha relação com Cazuza foi plena. Não preciso de mais nada. Mas nunca se sabe. A vida é um eterno retorno do futuro do passado”, admite.

A veracidade desse depoimento pode ser constatada em outras gravações realizadas ainda na década de 1980. “Inocência do Prazer”, um dos maiores êxitos de Dulce aconteceu na forma de presente. “A letra de ‘Inocência do Prazer’ foi feita pra mim, inspirada no fim de uma romance que eu tive com uma pessoa ligada a ele também. Cazuza tinha essa capacidade de se colocar no lugar do outro e ainda assim falar dele”, avalia. E para quem quiser ter uma vaga ideia de como se davam esses encontros, a melhor pedida está no dueto em que interpretaram a música de Aldo Meolla. “‘Tudo é Mais’ gravei no meu primeiro disco, o ‘Délica’. Eu tinha saído do ‘Sempre Livre’ –  ele achou ousado, mas acabou fazendo a mesma coisa depois. A gente riu a beça disso. Essa gravação tem uma história engraçada. Ele se atrasou muito para a sessão e eu acabei ficando de pileque. Gravamos, mas a minha interpretação ficou exagerada – não era só ele o exagerado – então depois eu resolvi gravar de novo a minha parte da voz. Deixei só a estrofe final onde a gente alterna as frases. Ele reclamou, mas depois me confessou que fez o mesmo em uma gravação com o Luiz Melodia. Enfim, nós nos espelhávamos um no outro”, diz.

Pois como se o futuro repetisse o passado Dulce apresenta seu museu de grandes novidades.

DULCE QUENTAL -foto de Aderi Costa -ab

Raphael Vidigal

Fotos: Divulgação; e Aderi Costa, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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