“Olhos, orelhas, nariz,
Um gris
Celofane que não fendo.
Em minhas costas nuas
Sorrio, um buda, querendo
Tudo, desejos
Caem de mim como anéis
Abraçando suas luzes.” Sylvia Plath
Elas são 8, mas podem se dividir em duas ou expandir, como nos mostra o belo ensaio fotográfico feito por Paula Huven, em que se refletem e multiplicam. Nesse caso, mais importante do que os números são as palavras, que na trajetória do Coletivo A.N.A preponderantemente vêm acompanhadas de sons, das quais elas fazem questão de serem as donas irrevogáveis. As vozes e letras em questão, além de habilidades instrumentais, pertencem a Irene Bertachini, Luana Aires, Michelle Andreazzi, Leopoldina, Luiza Brina, Laura Lopes, Leonora Weissmann e Deh Mussulini, de quem pinçamos a última informação. “Mesmo sendo um coletivo de compositoras, até hoje vejo demais as pessoas nos divulgando como um coletivo de cantoras”, ela aponta.
O erro, certamente, não ocorre apenas por lapsos, erros de digitação ou distração, é preciso abandonar a superfície da história para tentar compreendê-lo sob ótica um pouco mais apurada. Na ativa desde 2011, o grupo pioneiro de mulheres, cuja sigla significa Amostra Nua de Autoras, pretendia dar voz e espaço para criadoras mineiras com talentos em diversas áreas, dentre elas a música, a literatura e as artes plásticas, com profissionais da atuação artística e da produção. A primeira demonstração prática que pôde ser registrada aconteceu em julho de 2014, com o lançamento do CD “Ana”, que conta com 11 faixas, direção e produção de Rafael Martini, arranjos de Joana Queiroz, Aline Gonçalves, e outros, e participações de Ná Ozzetti, Déa Trancoso, e etc.
MULHER
Realizado com apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, o álbum chama atenção para temas caros às mulheres, especialmente em canções como “Parto” e “Filho”. Se melodicamente há uma grande ênfase à harmonia que sempre referenciou a canção mineira, desde o período barroco até sua incorporação ao que se designou chamar de “Clube da Esquina”, a pesquisa neste campo permite incluir elementos de experimentação sonora e com alta dose de modernidade, o que coloca o grupo tanto junto à tradição quanto ao contemporâneo, receita que tende a gerar clássicos. A abordagem dos temas, não raro, é feita de forma direta e lírica, outra característica que requer domínio do tempero. Recentemente, elas lançaram mais uma novidade.
“Canção Pra Mim”, apresentada no Teatro Santo Agostinho, na capital mineira, no último dia 7 de maio, já conta com vídeo-clipe em rotação nas plataformas digitais, para quem perdeu o espetáculo. Uma das intenções do acústico, de acordo com as integrantes, era trazer “muito da poesia e da profundidade da alma feminina”. Na composição destacada há o uso de expressões populares revestidas sob camada poética, como, por exemplo, “ao pé da letra” e “abrir mão”. Sobre novos e antigos desafios, Deh Mussulini comenta: “A ideia do coletivo surgiu justamente para legitimar a presença da mulher compositora. Existem muitas, apenas não são, ou somos reconhecidas. Queremos promover e incentivar mais mulheres a se empoderarem musicalmente, colocando suas canções pro mundo, assumindo-nos compositoras e instrumentistas”, enfatiza.
ANA
“O nome ANA veio do pensamento de que deveria ser um nome feminino para reforçar o cunho ideológico do projeto”, continua Deh. Num país que é dito e havido por suas cantoras é de se estranhar que aclamação parecida não ocorra quando elas são donas das próprias palavras que cantam, como nos casos de Dolores Duran, Maysa, Chiquinha Gonzaga, Dona Ivone Lara, Angela Ro Ro, Anastácia, Fátima Guedes, Joyce, Sandra de Sá, Rita Lee, Adriana Calcanhotto e tantas outras, em todas as décadas da nossa música. Algo que tem certamente a ver com a nossa enraizada e constrangedora cultura do patriarcado, que recentemente parece ter recolocado a cabeça pra fora antes os holofotes sob as formas mais primitivas. Mas as mulheres vieram para ficar.
Em relação às dificuldades que enfrentam para produzir cultura na cena de Belo Horizonte, Mussulini aponta falhas que não vêm de hoje. “É um cenário muito produtivo. É impressionante como está a todo vapor atualmente no viés do artista produzindo. Porém ainda falta muito em investimento por parte do Estado, políticas publicas, e até ações educacionais para formação de público. Enquanto mulheres ficamos à margem ainda, apesar das várias conquistas que estamos ganhando com muita luta”, ratifica. Como sempre, não falta artista, mas incentivo, já que os mecenas não são tão interessados ou cultos como antigamente, ou, ainda, a robustez financeira destes não é mais a mesma de antigamente. Lembremos então o que ouviu o poeta Mario Quintana do escritor Monteiro Lobato: “por mais escondido que esteja o talento sempre aparece”.
ARTE
Desde a sua formatação o coletivo “A.N.A.” adota uma postura francamente proativa e contestatória. Cabe aqui a lembrança duma resposta do músico, ator e agitador cultural Maurício Tizumba quando questionado sobre a formação da “Cia. Burlantins”, grupo teatral composto só por artistas negros. “Por que nunca perguntam o fato de outras companhias terem só artistas brancos?”, desabafa. Está nítido e claro que o coletivo “A.N.A.” presta importante papel no combate ao preconceito contra a repressão de minorias, no caso específico, das mulheres, munidas, por mérito, de alta conceituação e capacidade artística. “Em minha opinião a arte não se desvincula da política, do social, da luta, do amor, enfim, de uma ideologia que contribua à promoção de pessoas e valores, que promovam igualdade sócio-cultural. Isso eu levo para a minha vida. Não vejo sentido em nenhuma ação que não contribua de alguma forma para o coletivo”, arredonda Deh Mussulini.
Mas ninguém pense que esse caminho surgiu de graça ou por mágica, para chegarem até aqui todas as integrantes receberam ensinamentos das mais variadas vertentes. Variedade e diversidade, aliás, é um dos valores que brota do trabalho do coletivo, e que tem feito tanta falta aos nossos dias. Questionada sobre as influências do grupo, Deh busca a comunhão na pluralidade. “Bem, referências são muito pessoais. O legal do coletivo é esse, somos 8 musicistas com influências diversas, uma tem o rock, a outra tem o samba, MPB, congado. Mas nos misturamos e conseguimos uma sonoridade nossa”. Sonoridade essa que buscou, no único disco até agora, informações em grupos vocais, “onde a voz era usada como instrumento, como Dirty Projectors (grupo vocal norte-americano), por exemplo.” cita. Vozes, palavras e instrumentos que falam de coração para outros corações. É estender essas pontes, como um A eNtre outros A´s.
Raphael Vidigal
Fotos: Henrique Bocelli; e Paula Huven, respectivamente.
1 Comentário
Maravilha de texto! Captou a sensibilidade da proposta do coletivo e expôs, de maneira simples e bela, a essência do maravilhoso trabalho dessas artistas sensacionais!!