Entrevista: Ana Cecília Costa cria mundos com sua arte

“Uma mulher que ama poderá desejar muito ser mãe, porém, o desejo apenas, embora profundo e intenso, não é suficiente. Entretanto, um dia ela se tornará mãe, sem, contudo, ter-se apercebido do momento em que isso se deu. O mesmo acontece com o artista: vivendo, ele reúne em si um sem-número de germes de vida e nunca poderá afirmar ‘como’ e ‘por que’, num determinado momento, um desses germes vitais penetrou a sua fantasia para tornar-se, também ele, uma criatura viva, no plano da vida superior, acima da volúvel existência de todos os dias.” Luigi Pirandello

Atriz Ana Cecília Costa é protagonista da peça "A Língua em Pedaços"

Ana Cecília Costa não nasceu ontem, mas também não se atrela ao tempo para determinar os próximos passos. Com ganas e energia de quem está sempre começando, ela segue em cartaz com o projeto “A Língua em Pedaços”, do qual foi mentora e onde interpreta a protagonista Santa Teresa D’Ávila, que tem partes de sua vida contadas no espetáculo dirigido por Elias Andreato com texto de Juan Mayorca e atuação de Joca Andreazza. “Esse é um espetáculo que desejo levar por muito tempo, porque Teresa D’Ávila é uma personagem inesgotável, atemporal, me faz muito bem interpretá-la, e percebo que também faz bem ao público ouvi-la. Temos tido uma recepção maravilhosa por onde passamos. Possivelmente, voltaremos com a peça em São Paulo ano que vem no Mosteiro de São Bento”, anseia. Mas não para por aí, ao contrário.

Com larga trajetória como atriz, Ana Cecília tornou-se mais conhecida do grande público ao interpretar personagens marcantes e carismáticas em duas novelas da rede Globo, “Cordel Encantado” e “Joia Rara”, e promete estar de volta às telinhas em breve. “Na televisão, estarei na próxima novela das sete da TV Globo, ‘Rocky History’. A minha personagem, Mariane, entra no meio da trama, ela é uma ex-amante do personagem de Vladimir Brichta, com o qual tem um filho. Uma mulher irresponsável, que deverá perturbar a vida do ex-amante. Não sei dizer muitos detalhes ainda, mas estou bem animada”, assegura. E para não deixar de fora nenhuma arte, muito menos a 7ª, também tem novidades para o cinema. “Deve estrear em 2017 o longa-metragem ‘3X4’, da diretora Adriana Vasconcelos, onde interpreto a protagonista”, revela Ana.

CENÁRIO
No cinema, Ana contabiliza três participações. “Garotas do ABC”, de Carlão Reichenbach, de 2003, “Capitães da Areia”, adaptação do romance de Jorge Amado feita pela neta do baiano, Cecília Amado, na pele da ótima Dalva, uma prostituta, lançado em 2012 para comemorar o centenário de nascimento do autor, e, mais recentemente, em “O Escaravelho do Diabo”, outra adaptação literária, desta vez com o sucesso do universo infanto-juvenil, lançado este ano. Ainda sobre “3×4”, Ana afirma tratar-se de “uma história muito forte sobre uma ex-presidiária que tenta resgatar sua vida”. E já se prepara para a atuação em novas áreas. “Como artista empreendedora eu também estou trabalhando no roteiro de um filme em parceria com uma amiga muito talentosa, Márcia Heloísa. Essa história eu tenho o sonho de que vire um longa-metragem”, diz.

Ou seja, Ana Cecília Costa está só começando. Por isso para avaliar o atual cenário cultural do país, vale-se tanto da experiência adquirida quanto da minuciosa observação do instante, numa alquimia entre passado e presente a fim de suspeitar o futuro. “A cultura de uma forma geral no Brasil foi muito beneficiada nos últimos anos com editais e as leis de incentivo. O cinema brasileiro deslanchou, grupos de teatro e de dança foram subsidiados, houve muitas produções de espetáculos, inclusive musicais caros, houve uma maior democratização da cultura através dos pontos de cultura, que descentralizou a produção dos grandes centros, etc. As TV’s fechadas foram obrigadas por lei a exibirem conteúdos nacionais, isso impulsionou a produção de séries, documentários, programas, etc.”, considera. Mas a história ainda não acabou…

TEATRO
Formada em Teatro pela Universidade Federal da Bahia, Bacharel em Cinema e Mestranda em Comunicação, fica claro que para a artista Ana o ofício, para além do gesto, completa-se na reflexão. Logo não é de se espantar que ela não veja com bons olhos medidas que preguem a extinção de iniciativas culturais e muito menos construções narrativas que tragam para elas a ojeriza de parte da população. “Os editais são fundamentais, sobretudo para a cena alternativa, grupos de pesquisa, de periferia, já que as empresas que patrocinam, através das leis de incentivo que geram renúncia fiscal, preferem vincular sua marca a um produto cultural que traga um rosto conhecido da TV. Antes das leis de incentivo, o produtor pegava um empréstimo no banco, pagava a produção, colocava a peça em cartaz, corria-se o risco, a peça ficava em cartaz de 3ª a domingo! Mas o mundo mudou, não havia a concorrência das TV’s a cabo, da internet, do entretenimento doméstico”, enumera a atriz.

Na contramão da maré dos que especulam ser do público a culpa pela dificuldade dos produtores de cultura, Ana depõe com a própria experiência, sobre o palco onde começou e que a levou a ter inusitada experiência na Alemanha, quando teve de substituir a atriz principal de peça baseada no texto “Crônica de uma Morte Anunciada”, de Gabriel García Márquez, sem dominar o idioma local. “Acredito que o teatro esteja bem vivo! Percebo com as apresentações de “A Língua em Pedaços” que os artistas e o público precisam e sentem falta do rito, da comunhão, da troca que só o teatro estabelece. Fizemos alguns debates pós-peça, e discutimos junto ao público sobre a necessidade da comunicação direta, não mediada por máquinas. O teatro é muito poderoso, não vai morrer nunca”, aposta. Nos palcos, Ana já atuou, por exemplo, em “Brida”, em 1992, “Passeio Pelo Expressionismo” e “Drama das Estações”, no ano 2000, além de “Jekyll Hyde” e “Hahnem Kammen”, em 2001.

LEMBRANÇAS
Quem observar com atenção as cenas de que participa Ana Cecília em “Capitães da Areia” logo perceberá sua intimidade com a estética, o sotaque e o ser baiano. Para além da interpretação, há certas coisas que ficam impregnadas e superam técnicas e preparações refinadas. Daí o espanto do maior dramaturgo de todos os tempos, o nem tão distante bardo inglês William Shakespeare quando da interação de atores com personagens; algo havia de misterioso nessa simbiose. E ainda há. “Nasci no interior da Bahia, na cidade de Jequié, onde vivi até os 7 anos. A minha lembrança mais remota de arte vem da escola, com uns 6 anos, participando das peças da professora Zélia. O que me comove é que desde muito menina levava aquela brincadeira a sério, dava tudo de mim, eu tinha 6 anos e lembro até hoje da minha fala e da emoção em estar no palco”, recorda Ana, como a criança que parece acompanhá-la. Antes de ganhar os mundos a intérprete aprendeu nas origens.

“Já em Salvador, comecei a estudar teatro aos 14 anos no Colégio Antônio Vieira, em um grupo de teatro amador. Depois fui fazer o ‘Curso Livre de Teatro’ da Universidade Federal da Bahia. Na minha adolescência, havia um ambiente em casa muito artístico, meus irmãos mais velhos eram jovens criativos, contestadores, sensíveis, que amavam música, teatro, literatura, viagens, aprendi muito no convívio com eles, pois eu sou a mais nova. O que posso dizer é que sempre desejei ser atriz, aquilo era natural para mim”, destaca. No entanto, esta escolha não foi aceita de forma tão natural pelos que a circundavam, o que reforça, uma vez mais, o caráter desbravador da natureza de Ana Cecília, que teve de tomar as rédeas da vida desde cedo. “Os meus pais, no princípio, não apoiaram a minha escolha profissional, e foi duro abraçar a minha vocação. Mudei de Salvador para estudar teatro no Rio de Janeiro. Depois fiz faculdade de Cinema, e mais adiante Mestrado em Comunicação com pesquisa em documentários autobiográficos”, ressalta.

MULHER
Como artista, Ana é múltipla. E isto não é apenas figura de linguagem. Ela se aventurou, por exemplo, na direção do curta-metragem “O Casamento”, lançado em 2003, e de videoclipes da cantora Katia Dotto. Também não rejeita influências de outras artes. “As artes visuais sempre tiveram uma forte influência na minha formação. Gosto muito de pintura, desenho, videoarte, filmes de ficção e documentários. Tenho paixão por documentários, aprendo muito como atriz com esse material tão humano. A literatura também é um refúgio e inspiração. Nunca fui muito musical, tentei estudar alguns instrumentos, mas não levo jeito, uma pena”, lamenta. Mulher que se posiciona tanto nos papéis que escolhe para interpretar como os que ela mesma sugere e inventa, Ana também movimenta as redes sociais levantando esta bandeira. “Acho que, de uma forma geral, a representação da mulher é muito vulgarizada aqui no Brasil, sobretudo na televisão, isso reflete e alimenta a cultura machista em que vivemos”, reflete.

“O machismo independe de gênero, mas acredito, sim, que a presença no mercado de mais autoras, diretoras, produtoras enriqueçam e complexifiquem as personagens femininas e suas histórias”, e para isso ela dá exemplos vividos na própria pele. “Eu tive a oportunidade de trabalhar como atriz com algumas diretoras e roteiristas de cinema, como a Cecília Amado, Lô Politi, Adriana Vasconcelos, Márcia Paraíso, autoras de TV como Duca Rachid, Thelma Guedes, Ecila Pedroso e, agora, Maria Helena Nascimento, as diretoras de TV Amora Mautner, Joana Jabace, Natália Grimberg, e, agora, Maria de Medicis e, sem dúvida, essas mulheres têm um olhar criativo e profundo da arte, e nossa parceria flui muito bem. Sinceramente, estamos num momento da história, em que os produtos culturais precisam traduzir a pluralidade dos gêneros, raças, credos, e para isso o mercado também tem que absorver profissionais diversos, não cabe mais ouvir só o discurso do macho-branco-rico, é empobrecedor”, ratifica.

PLURAL
A pluralidade a que Ana se refere está presente no seu dia-a-dia. Atriz por excelência, uma das diferenças a que se tem acesso é a que os próprios suportes impõem, embora o ofício, em tese, siga o mesmo. “Em relação ao meu trabalho como atriz, o teatro é o lugar onde a relação com o público é direta, sem mediação, portanto meu poder é maior. Corro mais risco, mas meu prazer é mais intenso. Na TV, temos de exercitar uma inteligência e agilidade muito grande, admiro demais todos os profissionais da teledramaturgia no Brasil, sobretudo das novelas, porque aquilo é uma gincana, uma luta insana contra o tempo, e isso não implica em perda de qualidade”, opina. “Eu me jogo na TV, como me jogo no teatro, não quero dar menos de mim, me poupar, sobretudo, porque sei que esse é um veículo de comunicação de massa, e nessa massa que nos assiste tem muita gente que nunca foi ou irá ao teatro ou ao cinema, mas assiste à televisão. Por isso tenho a maior responsabilidade e respeito quando atuo para novela. Mas eu não tenho controle sobre o meu trabalho, pois a edição pode ressignificar cada pausa que eu der”, aponta.

E esta não é a única questão que Ana aponta em relação à televisão brasileira. O famoso mercado de celebridades, importação que traz a gênese do funcionamento capitalista, em que se estimula o consumo de produtos descartáveis para possibilitar à economia uma rotação sem fim, está no âmago de um desses problemas apontados pela artista. “Para mim, a questão mais delicada da televisão é a perda da privacidade, a construção de um eu-celebridade que pode perder o senso da realidade e tudo virar um show da vida”, ironiza. Do outro lado da moeda a grande tela também apresenta seus prós e contras, como, aliás, tudo na vida, diria com sabedoria o filósofo mais antigo. “Quanto ao cinema, realmente é um veículo que tem o poder de revelar a alma do ator e da atriz. O resultado é mágico, mas o fazer é uma ralação. Acredito que a chave de atuar para cinema esteja na concentração e no se deixar revelar. Uma arte que pede delicadeza e confiança”, sublinha. Pois se o rosto de Ana é hoje tão conhecido, são ainda mais marcantes os sentimentos que nascem das expressões reveladas por ela em teatro, cinema e televisão.

ARTE
Para finalizar, a artista dá uma pincelada sobre a cultura e o papel da arte, sua função, e na possibilidade de que elas convivam com o mercado e o entretenimento. “Acredito totalmente na relação entre arte e entretenimento, mercado e cultura. Sempre fomos criadores, produtores e consumidores de arte e cultura! As sociedades não existem sem isso, essa é uma verdade clara e simples. Fico espantada de ver governantes cogitarem cortar a arte, a filosofia e o esporte da formação de um jovem! Esse seria um país física e mentalmente doente. A arte expande nossa visão de mundo, gera senso crítico, reflexão, beleza! Diverte, angustia, nos faz amadurecer como indivíduo e cidadão. Uma pessoa pode não sair do seu claustro, mas tem o mundo inteiro em um livro, por exemplo! Eu não seria eu mesma sem as imagens, as palavras, os sons que me formaram. A arte, especialmente o teatro, é meu lugar no mundo”. Como se sente, Ana Cecília Costa pinta quadros encantados.

Ana Cecília Costa é atriz de cinema, teatro e televisão

Raphael Vidigal

Fotos: Divulgação; e Guito Moreto, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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