*por Raphael Vidigal
“Um trecho de paisagem campesina,
Uma tela suave, pequenina,
Um pedaço de terra sem igual!
Oh, abre-me em teu seio a sepultura,
Minha terra d’amor e de ventura,
O meu amado e lindo Portugal!” Florbela Espanca
A coisa até começa bem, mas não engrena, desanda e a safra que se avizinha logo reverte a expectativa. Com uma boa e orgânica fusão entre funk e MPB, “Ninguém na Rua” abre os trabalhos de “Só”, disco de nove canções composto por Adriana Calcanhotto, 54, no tempo recorde de onze dias, durante a quarentena imposta aos brasileiros por conta da pandemia do novo coronavírus, que já matou quase 30 mil pessoas no país.
Dedicado a Moraes Moreira (1947-2020), o lançamento chega à praça menos de um ano após o elogiado “Margem” (2019), outro fator inédito. Ao longo de sua carreira, iniciada no mercado fonográfico em 1990 com o irreverente “Enguiço”, a intérprete jamais lançou discos autorais com uma distância tão curta entre um e outro. Tais circunstâncias ajudam a compreender as características do álbum, mas não alteram a percepção de um certo esgotamento criativo.
“Era Só” emula a desilusão de hits anteriores de Adriana, sem causar o mesmo impacto, embora seja contornada pelo toque lírico do piano de Zé Manoel. O jogo minimalista de palavras tampouco chega a impressionar. Os sambas “Eu Vi Você Sambar” e “Sol Quadrado” surgem deslocados no contexto interiorizado do disco e rebatem uma pretensa unicidade.
Apesar disso, se destacam no conjunto, em especial o segundo, que dá vazão a imagens divertidas e gaiatas, bem ao estilo do gênero: “Diz uma lei da física/ Que o que jogas pro alto/ Volta para o teu telhado/ O mundo dá voltas e agora/ Até o gado tá baratinado”, cutuca Adriana, explicitando o caráter de sátira política da faixa. Nesse ínterim, “O Que Temos” se aproveita dos sons de panelas e reforça o tom de protesto.
Acontece que o distanciamento adotado pela cantora para abordar esse tipo de acontecimento arrefece o espírito da revolta. A despeito disso, ela saca observações oportunas: “nós estamos amontoados e sós”. “Tive Notícias Suas” volta a nos lembrar de uma Adriana de outrora – que, verdade seja dita, nunca foi chegada a intensidades –, porém, reciclada, e restringindo a temperatura da canção a um período morno: “o coração de quarentena/ na quaresma/ nas trevas/ e tive notícias suas/ num mundo de notícias”, versa, com pouca inspiração.
Frequentemente, as melodias soam mais envolventes do que as novas letras de Adriana, admiradora confessa de poesia e parceira de gente da tarimba de Wally Salomão (1943-2003), Antonio Cícero, Zé Miguel Wisnik e Péricles Cavalcanti. “Lembrando da Estrada” talvez seja o caso em que essa condição fica mais aparente. Se peca pelo discurso ralo, é inegável o seu potencial para se tornar um chiclete cibernético, o que antigamente nos grudava na cabeça através do rádio.
“Bunda Lê Lê”, com a participação de Dennis DJ, comete o pior equívoco. Ao se apropriar, cheia de pruridos, do universo do funk, a intérprete rouba a potência da relação despudorada e imoral estabelecida pelo ritmo com o corpo. A pretensão do conselho nos leva, justamente, na direção oposta: “senta a bunda e estuda”. “Corre o Munda”, que traz a explicação de que os romanos chamavam o rio que banha Coimbra de munda, reflete a nostalgia de Adriana da cidade portuguesa em que ela escolheu morar, e para a qual a pandemia a impediu de regressar.
Com uma poesia mais elaborada, a espontaneidade desse sentimento parece contribuir para a beleza da música, cujo fulgor fica nítido frente a um cenário de mormaço. O que não se verifica em parte significativa do repertório, onde a contenção se revela apenas como um registro pálido dentro de obra relevante construída pela anfitriã até aqui. Ao contrário, o anterior “Margem”, este sim, está à altura do talento da compositora de “Esquadros”.
Fotos: Leo Aversa/Divulgação.