Diamantina está em evidência na biografia de João Gilberto escrita por Zuza

*por Wander Conceição (músico, escritor e pesquisador musical)

“Quando a palavra já não atinge as coisas e as coisas já não respondem às palavras, a música da natureza é a ponte que ainda liga a alma à tudo. Por ela caminhamos ao encontro de uma grande separação, levando na alma o medo de todas as coisas que terminam.” Emil Cioran

Quando abri meu Messenger no dia 09 de fevereiro deste ano, havia uma comunicação de Ercília Lobo. Quem seria essa pessoa? De forma extremamente polida, ela se apresentava como esposa de Zuza Homem de Mello e me dizia que o seu marido necessitava fazer contato comigo. Caso eu não pudesse passar meu número de telefone, será que eu poderia fazer contato por e-mail?

Quanta simplicidade! Zuza era dessas pessoas que a gente se apaixona por elas, antes mesmo de conhecê-las, bastava ler alguns de seus escritos. A acuidade com a informação, a preocupação com o pormenor, a leveza, a elegância do texto! Em maio de 2009, Zuza lançara em Belo Horizonte a edição revista e atualizada de “Eis Aqui Os Bossa-Nova”, mas eu não pude participar, e perdi uma grande oportunidade de conhecê-lo. Como não repassar o meu número de celular para um ídolo, um crítico musical famoso, considerado pelo jornal Estadão o maior pesquisador cultural do Brasil?

Conversamos por mais de uma hora pelo telefone. Zuza me informou que havia escrito um pequeno livro em 2001, para comemoração dos 70 anos de João Gilberto, a convite da PubliFolha. Falei para ele que um exemplar ficava no criado-mudo, ao lado de minha cama. Zuza continuou dizendo que o trabalho fora um pouco corrido, para ser entregue no tempo proposto. Iria aproveitar boa parte das informações registradas nesse livro, mas o desafio agora era muito maior: escrever a biografia de João Gilberto.

A mente inquieta diante do desconhecido impulsionava o homem ávido de esclarecimentos lógicos em busca de respostas. Zuza me revelou que já havia tomado conhecimento do meu trabalho e sabia que eu estava preparando um livro. Desse modo, ele não poderia escrever sobre o período que João Gilberto vivera em Diamantina, sem ter um esclarecimento geral de tudo que havia ocorrido de fato naquela época. Entre as suas diversas interrogações, Zuza achava muito estranha a informação corrente de que João Gilberto havia desenvolvido o ritmo da bossa-nova em um banheiro.

Zuza estava corretíssimo. O laboratório de João Gilberto sempre foi o quartinho de fundo, onde ele dormia. Era ali que o músico passava horas a fio, madrugada adentro, buscando aperfeiçoar, exaustivamente, a batida renovadora. A experiência do banheiro era esporádica, momento em que Joãozinho podia se ouvir melhor. Contudo, o que fazia o som reverberar no interior do banheiro não era o conjunto de “azulejos velhos impregnados de vapor”. O que aguça a acústica naquele local é uma claraboia interna, que vaza o sobrado de dois andares, do solo ao telhado. Uma de suas paredes é também a lateral do banheiro, na qual a janela está assentada.

Durante alguns meses, conversamos bastante sobre a passagem de João Gilberto por Diamantina. Pude esclarecer a Zuza que a proposta do meu livro vai muito além desse episódio. O texto trata da história de Diamantina, concentrada no século XX, e aborda como sua economia e sua cultura colaboraram para a evolução do mundo e do Brasil, inclusive para a renovação da música popular brasileira, com o surgimento da bossa-nova no Rio de Janeiro.

Nos primeiros contatos comigo, Zuza se intitulava “um chato”, por causa das perguntas que fazia, mas, com o nosso convívio, ele foi percebendo o quanto sou igualmente obcecado pela fonte da informação. Se eu já o admirava, passei a admirá-lo muito mais, quando Zuza me confidenciou ser avesso aos trabalhos superficiais, adeptos dos informes rasos. Isso nos aproximou bastante e, sem nunca termos nos encontrado, encetamos uma grande e afetuosa amizade.

Um acompanhando a finalização do trabalho do outro (ele com a biografia de João Gilberto, eu com o livro “Desafinado: Das Cinzas da Acayaca à Bossa-nova”), Zuza sempre se despedia de mim deixando um abraço afetuoso, mas “respeitando dois metros de distância, por enquanto”, por causa da pandemia.

Projetamos o lançamento dos dois livros, o dele certamente sairia primeiro. O meu, somente ano que vem. Faço questão que meu trabalho seja publicado por Minas Gerais, por isso fiz contato com a Editora Mazza, que se tornou grande parceira do trabalho. Nessas duas ocasiões, com certeza, nos conheceríamos afinal. Quem sabe já haveria espaço para um abraço de verdade!

Mas na manhã do domingo, 4 de outubro, recebi a mensagem de Ercília Lobo, informando-me que meu amigo virtual havia partido para muito longe. Meus olhos ficaram umedecidos e um enorme silêncio me invadiu. Restou-me, entretanto, o consolo de saber que, na terça-feira passada, Zuza havia terminado a biografia. Fiquei um bom tempo recordando do que ele havia me confidenciado em 10 de junho, quando João Gilberto faria 89 anos, se vivo estivesse: “Falei para os jornais que haverá uma grande surpresa no meu livro sobre o período que João Gilberto viveu em Minas Gerais. Mas apenas agucei a curiosidade dos leitores e, claro, você é o personagem principal”.

A cultura brasileira perde um profissional maravilhoso, excepcional, e um ser humano belíssimo! Obrigado pela sua amizade Zuza!

Fotos: Editora 34/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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