80 anos de Altemar Dutra, o cantor para quem ‘morrer de amor’ era natural

*por Raphael Vidigal

“Não posso, por nada neste mundo, ser privado da minha consciência passional e da minha antiga afinidade de sangue com meus semelhantes e os animais e a terra, por aquela outra parca, espúria presunção mental que é tudo o que sobrou da consciência, logo que se torna exclusiva.” D. H. Lawrence

A conversa com Deus é direta e franca. Com a morte da mulher, o homem desesperado pede ao Senhor que o leve também: “Eu sei que teu poder é infinito/ Que és igual com pobres e com ricos/ E é por isso que em ti busco o consolo/ Para este coração amargurado”, argumenta o eu-lírico. A versão para o bolero “Roga por Nós”, da dupla de mexicanos Alberto Cervantes e Rubén Fuentes, foi lançada por Altemar Dutra em seu segundo LP, que já trazia o confiante título “A Grande Revelação”, sinalizando a aposta da gravadora Odeon naquele que viria a se tornar o maior fenômeno de vendas da década de 1960. Cantor romântico para o grande público, brega ao olhar de críticos. A trajetória começou na Rádio Difusora de Colatina, para onde se mudou com a família, a bordo de uma música de Francisco Alves, o “Rei da Voz”. Impulsionado pelos amigos, viajou ao Rio com uma carta para o compositor Jair Amorim e não demorou a estourar.

Fato é que, baixinho, rechonchudo, de cabelos crespos e pele moura queimada pelo sol, Altemar Dutra, nascido há 80 anos na cidade mineira de Aimorés, na divisa com o Espírito Santo, reunia no gogó as qualidades para interpretar músicas que colocavam o coração em primeiro plano: para ele era natural “morrer de amor”. Tanto que essa junção aparece em alguns de seus mais expressivos sucessos, casos de “Brigas”, com a qual gostaria de ser recordado: “Brigo eu, você briga também/ Por coisas tão banais/ E o amor, em momentos assim/ Morre um pouquinho mais/ E ao morrer/ Então é que se vê/ Que quem morreu fui eu e foi você/ Pois sem amor/ Estamos sós/ Morremos nós”. Ou, ainda, “Tudo de Mim”, com uma metáfora radical: “Só a minha vida/ Eu não lhe dou/ Como lhe dar/ Se morto estou”, ambas da dobradinha Evaldo Gouveia e Jair Amorim, que encontrou em Altemar o intérprete perfeito para suas derramadas dores de cotovelo.

A passionalidade ditava as regras, ou, como melhor descrito na canção que tornou seu epíteto, o sentimentalismo. Muito antes dos Los Hermanos, Altemar já falava sobre isso. Ao gravar “Sentimental Demais”, em 1965, o bolero apegou-se para sempre ao cantor. “As músicas que eu/ Vivo a cantar/ Tem o sabor igual/ Por isso é que se diz/ Como ele é sentimental”. A fama de Altemar atravessou fronteiras, levando-o a se tornar uma febre na América Latina. Ao lado de Lucho Gatica, gravou o LP “El Bolero Se Canta Así”, autoexplicativo, e vendeu mais de 500 mil cópias nos países vizinhos ao rebobinar hits no idioma espanhol. Nos Estados Unidos, as apresentações eram para os latinos que migravam à potência norte-americana em busca de oportunidades. Fatalmente, o músico sofreu um derrame em Nova York, em cima do palco do clube noturno “El Continente”, com apenas 43 anos. O choro do canto logo passou a percorrer os olhos.

A morte precoce escondeu das novas gerações a potência popular de Altemar Dutra. Custa-se a crer que o homem de quem ninguém se lembra mais arrastava multidões, hoje replicadas em shows de celebridades do porte de Ivete Sangalo, Annita, e das inúmeras duplas sertanejas, uma mais parecida com a outra. A quem resta um pouco de curiosidade, o disco póstumo “Altemar Dutra e Convidados”, de 1993, junta o anfitrião a nomes que, se não seguiram estritamente o seu estilo, tiveram nele uma influência e inspiração. Fafá de Belém, Joanna, Fagner, Sérgio Reis, Alcione, Agnaldo Timóteo e outros que vieram antes, como Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Miltinho e Angela Maria, dividem os vocais em faixas do calibre de “Eu Nunca Mais Vou Te Esquecer”, “Que Queres Tu De Mim”, “Somos Iguais”, “O Trovador”. É para matar de amor e ressuscitar essa voz que nasce lá do fundo, presa no peito embargado de Altemar Dutra.

Fotos: Museu da Imagem e do Som/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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