Com Mafalda, Quino colocou na boca de uma criança observações do mundo adulto

*por Raphael Vidigal

“As crianças continuam a ser como a criança que o senhor outrora foi: tristes e alegres. E, se pensar na sua meninice, sentir-se-á reviver entre elas, entre as crianças ocultas. Os adultos não representam nada, a sua dignidade não corresponde a nada.” Rilke

O grande truque de Quino foi levar para a boca de uma criança observações desconcertantes sobre o mundo dos engravatados que tocam as nossas vidas. A essas figuras miúdas é dada a liberdade de pensamento que o tempo nos obriga a largar, assim como a curiosidade e, ao que parece, outros sentimentos como indignação, honestidade, espanto. Afinal de contas, esse planeta com o qual se acostumaram aqueles que cresceram é realmente o mais lógico? De alguma forma, o hábito parece tê-los anestesiado diante de crimes e injustiças.

É isso o que nos questiona Mafalda, cuja sabedoria consiste em perguntar ao invés de responder. “As respostas são muitas e a tua pergunta é única e insubstituível”, escreveu Mario Quintana, outro apreciador da infância, como Nietzsche, Rubem Alves e Fernando Pessoa, poetas da proa do cartunista Quino. A mais famosa personagem do argentino permitiu a ele colocar o dedo na ferida em questões sociopolíticas sem o risco de parecer panfletário: sutilmente, trocou o ataque pela inocência e apostou em mudar consciências mirando os mecanismos, como também preconizava o grande escritor português José Saramago.

No centro de tudo, muitas vezes estava o seu país de origem, marcado por violentas ditaduras e enrolado em dívidas econômicas que perduram até hoje, fazendo valer a máxima do subdesenvolvimento sul-americano que enfrentou regimes autoritários financiados pelos ianques: em caso de dúvida, sacaneie o povo. Quino tinha poucas armas para defender os fracos e oprimidos: tinta, papel, lápis, e, sobretudo, a sua perspicácia. Para modificar o exterior, criou, dentro de si, pessoas interessadas umas nas outras, às vezes até solidárias. E, de bom grado, as ofereceu para crianças de todas as idades.

Ou, como diria, Mafalda: “É, tudo bem, trabalhar para ganhar a vida, claro! Mas por que é preciso desperdiçar a vida que a gente ganha trabalhando para ganhar a vida?”.

Ilustrações: Quino/Reprodução.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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