Crítica: Sátiro e irreverente, Jards Macalé lança primeiro DVD ao vivo

*por Raphael Vidigal

“Quando eu nasci
Um anjo louco
Um anjo torto
Um anjo doido
Veio ler a minha mão” Torquato Neto & Jards Macalé

Sátiro, selvagem, gaiato. Com essas palavras alguns músicos e convidados definem o protagonista nos extras do DVD. Há também os que preferem as atribuições propícias ao nome: MACALÍSTICO, MACALÉA, JARDS JACARÉ. Não são raros os artistas cultos que utilizam a irreverência para fugir do pedantismo. De Antônio Abujamra a Paulo César Peréio, passando por Cazuza, com parada providencial em Paulo Leminski, Jards Macalé é mais um deles. Só que Macalé, como seus pares, nunca foi só mais um.

Relegado ao lugar de “maldito”, o músico que tentou suicídio na década de 1980, renasce. Além de ter música no próximo álbum de Ney Matogrosso, Macalé agora lança seu primeiro DVD. Com formação erudita e goles na fonte de João Gilberto e Baden Powell, o músico apresenta trabalho coerente com a sua trajetória, subvertida pela tradição da diversidade. Há de tudo um pouco em Jards Macalé, e seus parceiros comprovam. Dos tropicalistas Torquato Neto e Wally Salomão ao samba de breque malandro de Moreira da Silva.

Munido de um cacho de bananas, que mais tarde atirará na plateia, o espetáculo filmado no Theatro São Pedro de Porto Alegre abre com canção símbolo do experimentalismo de Macalé, em que o músico distorce imagens e fonemas a partir de letra do poeta Torquato Neto. A mistura de linguagens se dá no campo verbal, com expressões em inglês e português, e, sobretudo, pela metáfora da liberdade. “O Poema de Sete Faces” de Drummond é o ponto de partida da parábola de “Let´s Play That”, e a banda não poupa esforços.

Com um naipe potente de sopros, teclado, piano, bateria, guitarra e baixo, além do inconfundível violão de Macal e sua característica voz abafada que lhe serve para interpretações entre a lamúria e o histriônico, clássicos da carreira do músico recebem arranjos que mantém em cena a inquietação artística de Jards. Pelo despojamento performático, a aparente despreocupação, e o pleno domínio de suas ferramentas de trabalho, cada momento é único, em que a mesma música se permite a improvisos novos, mares nunca navegados.

Thaís Gulin, a primeira convidada, se coloca a serviço de “Hotel das Estrelas” e “Revendo Amigos”, músicas de difícil interpretação pelo caráter diverso das composições de Macal, Duda e Wally Salomão, que pretendia não apenas a mistura entre o coloquial e o rebuscado, como é possível notar em rimas que usam “porreta” com “nau catarineta”, quanto das sensações, entre a ebulição e a angústia, qualidades impregnadas em Jards. Com voz marcante, Gulin dá conta do recado, em momento onde Macalé se põe ao largo para aplaudir.

Músicas como “Gotham City”, com Capinam, e “Canalha”, de Walter Franco, deixam entrever outra faceta de Macal. O ator, contador de histórias, que detém a respiração e o sotaque necessário para imprimir graça às colocações. Num momento, Jards solicita vaia à plateia para relembrar momento histórico, e recorre a uma imitação de Nelson Rodrigues, que deflagra: “Só a vaia consagra”. Depois de atendido, debocha de episódio em que o protagonista foi Caetano Veloso: “Vocês não entendem nada, são os velhinhos de hoje!”.

Em outro, habilidosamente costura o coro da plateia para que esta, ao cantar o refrão, dê a impressão de que o chama de canalha, ao que ele responde: “Vocês sabem de tudo”. Nesse constante movimento de troca, Macalé se equilibra no fio da aparente imprevisibilidade, pelo fato de estar aberto a possibilidades, nada o impedirá, mas a recíproca dificilmente será verdade. Ele recebe Zeca Baleiro e saca uma faca, representa uma capoeira e canta com Luiz Melodia um reggae e música de Sérgio Sampaio, com Renato Piau.

Ao final, todos voltam ao palco para saudar Macal, na monossilábica “Coração do Brasil”, em que a primeira palavra do título é precedida somente pela onomatopeica “Ai”. Destaques para a direção da cineasta Rejane Zilles, a iluminação e o cenário, que dão vapor à cena. Sobretudo a luz azul capaz de sublinhar Macalé, que plana como num quadro do pintor russo-francês Marc Chagall, extravagante, fantasioso, com um acento único, irônico, desesperado, como se fosse um fauno, metade humano e a outra bode, um sátiro.

Especial para o Hoje em Dia.

Publicado no dia 3 de agosto de 2015.

Fotos: Dulce Helfer.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

1 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]