“Aquele que foi chamado o mais encantador dos loucos não foi também dos seres humanos o mais sábio?” Miguel de Cervantes
O encontro da “Cia. Burlantins” com a história de Dom Quixote de La Mancha criada por Miguel de Cervantes em 1605, na Espanha, revela a união de tradições, mas também a renovação delas. É nessa dicotomia que trabalha o musical encenado pela primeira vez em 2012, e que chega, com frescor, ao quarto ano em cartaz e peregrinando. Com roteiro bem costurado por Eid Ribeiro e direção segura de Paula Manata, o que salta aos olhos na montagem são os figurinos criados por Maria Luiza Magalhães e Janaína Castro, além de bonecos e cenário que ficam a cargo de Conrado Almada e Eduardo Félix.
Isto porque os acessórios e a vestimenta servem para transportar o espectador ao universo fantástico e lúdico do protagonista. A percepção de que o “Cavaleiro da Triste Figura” cria novos significados para o mundo através de sua lupa deturpada da realidade tem seu ponto nevrálgico, sobretudo, nesse acordo tácito tão comum ao teatro e à arte, o que, nas palavras do poeta Manoel de Barros pode ser compreendido pela máxima: “Hei de monumentar os insetos”. Além de uma ode à fantasia, procura extrair o valor daquilo que, pelo costume e a norma, não o mereceria. Em que Arthur Bispo do Rosário é outra referência importante.
Ou seja, a companhia mineira escolhe ver e apresentar a vida pelos olhos de Dom Quixote. Olhos incapazes de enxergar o óbvio, a realidade concreta, palpável, mas um ambiente que se conduz através do sonho e da esperança. Maurício Tizumba destaca-se no registro cômico de Sancho Pança, o representante da lealdade. Sérgio Pererê compõe um bom Dom Quixote, entre a pureza e a fragilidade. Nath Rodrigues confere à sua Dulcinéia tanto os traços idealistas de seu par romântico quanto a aspereza com que o mundo a trata. Alysson Salvador, Daniel Guedes e Ricardo Campos completam o time e a trupe.
Todos, sem exceção, músicos de primeira linha, que sabem contar uma história da gente simples sem com isso roçar a vulgaridade. As músicas de Pererê aspiram tanto ao relevo harmônico quanto à narrativa da trajetória de suas personagens de maneira a serem assimiladas pelo ritmo, pela batida que melhor do que todos os outros artefatos da encenação expressam as emoções. A tentativa de se preservar o vocábulo e a dicção do período em que o clássico foi escrito por vezes prejudica a fluência da trama, o que não macula, contudo, o conjunto do espetáculo; já tradicional, e cada vez mais contemporâneo.
Raphael Vidigal
Fotos: Bruno Magalhães.