Teatro (Crônica)

“Assim É… (Se Lhe Parece)”  Pirandello

Crônica

O Teatro. O que é o Teatro? Lembro-me da minha primeira experiência distante do claustro solitário, calabouço que armara para minhas vertigens diárias. Foi através do Teatro. Antes, divertia-me desenhando em cartolinas cores e desvios retos e justos que depois enfeitavam a parede dos armários. Muito antes ouvia frases que se não me anotavam somente na cabeça, julgo hoje terem sido os primeiros rompantes artístico-filosóficos (sem a pretensão que regularmente emana de tais palavras).

Todavia gostei de desenhar, escrever, rabiscar, até descobrir a bola e o Teatro. O primeiro mais redondo, menos requerente de horas a fio diante dos materiais partícipes. Sim, porque o futebol exige elasticidade, adrenalina, circunferência de meia, gude, chinelo ou latinha, tudo tátil e fácil de conseguir. Mas o Teatro predispõe entrega do corpo, matéria-prima indissociável ao exercício da interpretação, escrita e leitura do mesmo.

Portanto quando se pôs-me o primeiro desafio frente à escolha, decisão, bancarrota e lengalenga dei uma de Sofia: optei pelos dois. O que naturalmente, com o passar do passo, não iria durar muito tempo. Minha primeira experiência física e lembrada no Teatro percorreu delirante empolgação que corria os olhos no relógio de pulso, calendário de quadro e ansiedade de criança a esperar francamente que a sexta-feira logo chegasse para a aula.

Matriculado no curso com outros amigos, alguns relembro os nomes: Breno, Ana Luísa, minha irmã Teca, além disto é forçar inutilmente a memória. A professora: Solange. Adorava, me extasiava com as performances às quais éramos predestinados a realizar. E eu, dentro de minha arrogância infantil julgava-me pronto a desbravar os pavios patins patinetes palcos do mundo. Foi quando a dita professora / diretora não me escolheu para interpretar o papel principal de PLUFT, O FANTASMINHA. Preterido, indispus-me, recolhido à vilania de ter sido agraciado com o vilão da trama.

Não percebi que desde então passaria sempre a vilão, posto com gosto, mas no momento a reação foi de intemperança quando arrancam da boca o doce pirulito apito sino chupeta gorda da criança. Briguei com a professora, com direito à manchete nos jornais alardeando a confusão entre o artista louco e a burocrata rouca. Apenas na minha cabeça clara escura claro.

Fui além. O que dá-me certo orgulho oposto ao motivo de tudo. Montei minha própria ‘companhia’, com atores juvenis mirins tão inexperientes quanto eu. Escrevi a minha própria peça, imaginei cenários, figurinos, construí falas e diálogos repetidos, com a intenção de soar instantaneamente agradável e repentino. Para abalizar minha rebeldia, apresentei a ‘minha’ empreitada no mesmo dia que a trupe oficial da escola.

Abneguei o diabo na cruz, ria como um cão sarnento chupando manga ao ver a confusão perpetuada. Confesso, hoje, calmo e aliviado, minha predileção por desestabilizar a ordem, noções abalizadas pelo guru Jim Morrison. Nisso tudo, é irrevogável assinalar a ajuda e força da querida professora de primário, Maria José, escalada por minha altitude como diretora do espetáculo.

Passada a convulsão solapandeada, decidiu-se que o palco maior seria para a peça da escola, e noutra sala menor, apresentaríamos nós.  Vamos ao enredo inventado: a história tratava de um palhaço amigável que a todos ajudava, em torno dele ocorriam disfunções entre as pessoas, namoricos e coisas do tipo. Só não me lembro do resto, mas o todo mantenho guardado em alma cicatrizada. Eu era o papel principal, como quisera, e talvez inda seja: o palhaço.

Depois desse episódio, entrei de cabeça cachaça gorjeta. Principalmente porque a peça que nós montamos gerou maior sucesso, e teve que ser novamente apresentada, desta feita, no palco principal do colégio. Após este transtorno camaleônico combalido camafeu, estruturei tema versando sobre a história de Dom Quixote de La Mancha, que sempre me encantou. Construímos fantasias, espadas, coroas e perucas que ainda guardo na gaveta. Uma delícia de sentimentos. Criticaram posteriores quando fui chamado à frente do palco para ser congratulado, em função da descompostura. Percebi que a minha pose era será anti-pose.

Muitas apresentações assim ocorreram. Lembro-me especialmente de uma peça que escrevi chamada ‘O Assassinato do Prefeito’, onde foi construído um caixão de madeira com fundo falso, e no final descobria-se o prefeito não estar morto, mas vivinho da Silva. Desde tempos idos, a satisfação por subverter a expectativa acompanhou-me.

Tudo ia bem, mas rareando como farelo de biscoito se desfaz tão facilmente ao tocar dos dedos, que uma peça certo dia não deu certo. Os atores recrutados não decoravam as falas (talvez porque tenha passado a escrever textos cada vez mais longos), faltavam aos ensaios e o entardecer despertou em mim, misto de decepção e desânimo. Abandonei um pouco este ramo.

Adiante, o Teatro, este que escreve com maiúscula, Ser de membros e folhas e remos e louvas e lanças e taças e cantos e cânticos, poemas e frases, poesias e disfarces, segue-me como cachorro na rua, sem pedir nada, abana o ramo. Roubo Artaud, que me serve com xícara cor de rosa e vestidinho de babado: o Teatro é meu Duplo. Adivinhe-me se quiser.

Daumier

Raphael Vidigal

Pintura: “Dom Quixote”, de Daumier.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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