“Lembra minhas palavras uma a uma. Eu poderei voltar. Te amo, e parto, eu incorpóreo, triunfante, morto.’” Ana Cristina Cesar
A escrita de Raysner de Paula chama a atenção há algum tempo nos palcos de Belo Horizonte. Em “Danação” os méritos são comprovados. No espetáculo que leva pela primeira vez à cena Eduardo Moreira em atuação solo não é pouca coisa que o texto se assanhe como maior destaque. Cumpre dizer que o ator do Grupo Galpão colabora incisivamente para que as palavras tenham carne, na pele de mais de uma personagem que a intérprete invoca com ritmo e perspicácia. A história tem toda uma cadência própria, que tanto texto quanto Eduardo conseguem levar de tal modo a que as ilações tornem-se, de fato, palpáveis. Há, aqui, duas importantes premissas da narrativa, ambas relativas às noções de tempo e espaço. A primeira é a de carregar o teatro à sua origem, campo da imaginação, fértil, em que se amplia um caminho por sua característica simbólica, invocando a transformação através do gesto abstrato. Ou seja, ainda que o ocorrido seja inventado, é esta invenção que também tem a capacidade de modificar o real. De outra, a cena contemporânea do teatro assimila a nítida preocupação em aproximar-se, na busca de uma experiência mais coletiva e compartilhada, revolvendo o terreno da passividade para posições proativas, denotando-se como política independente do tema tratado. Neste caso há um atravessamento de tons e gêneros que costuram a unidade.
Esse panorama orgânico se assenta porque a poesia do texto encontra abrigo na iluminação, no figurino, na trilha sonora e no cenário, já que todos os elementos em cena convergem para essa mesma percepção lúdica, opção que, verdadeiramente, transforma em beleza um dos fardos da existência humana: o de que a vida fatalmente acaba de maneira irrevogável. Neste caso, a perda de ente querido que contraria a lógica matemática de uma vida fadada ao acaso reverbera ainda mais sensivelmente em sua relação direta com público, intérprete e, por que não dizer, o teatro. Pois fica claro que este se entende como espaço não somente de criação, mas, mais ainda, serve como recriação da lembrança, da saudade, do presente, do passado, e, inclusive, das dores que transcorrem durante esse percurso individual. Os movimentos de cena, as pausas, os gestos de indecisão, a dicção, são efeitos que, sem replicar a vida, pois, ao contrário, remodelando-a a cada instante sob o barro da arte, vêm a tornar a experiência teatral tão verdadeira que a emoção ali provocada, embora diante de uma farsa, comova a pele, coração, mente e carne, por oferecer-se de maneira cálida. “Danação” atende ao princípio de ser territorial e do mundo. Nesse espaço é uma peça sem limite de tempo, ela voa. Revolve-se o tempo em gesto, num convite, e daí por diante a vida transmuda.
Ficha técnica
Dramaturgia de Raysner de Paula.
Direção de Marcelo Castro e Mariana Maioline.
Com Eduardo Moreira.
Iluminação: Rodrigo Marçal/Arte Gráfica: Luísa Rabello.
Raphael Vidigal
Fotos: Marco Aurélio Prates