Cinema: Charlie Chaplin

“Mancha de tinta ou gordura, em todo caso mancha de vida.
Passar os dedos no rosto branco… não, na superfície branca.
Certos papéis são sensíveis, certos livros nos possuem.
Mas só o homem te compreende. Acostuma-te, beija-o.” Carlos Drummond de Andrade

Luzes da Cidade

Os calcanhares encostam-se desaforados. Aquiles, o herói, os mantinha escondidos. Porque o vagabundo não teme que sejam vistos assim? Chamam a atenção dos outros. E se o homem mais forte do mundo possuía os calcanhares fracos, imaginem o desastrado, infantil, tolo e débil ladrão de quentinhas da bengala imunda.

O passo frouxo, indecoroso e hesitante não deixa mentir. É mesmo um sujeito desprezível, pobre de alma e bens materiais. Pertence aos mendigos, vem do colo dos famintos, divide a trouxa e a cama com cachorros de rua. Não há um sorriso, um resquício de felicidade no rosto de lua atabalhoada, lua sem iluminação, nem minguante, minguada.

Há um buraco, uma falha na face, certamente alusiva ao caráter, deste pequenino ser a equilibrar-se em sapatos furados, já ausente de cadarços, os quais substituíram o macarrão no prato, numa noite gélida em que confundiram-lhe com uma galinha gigante, e por pouco não o devoraram. Tem nome essa figura desastrada?

(Charlie Chaplin; ou humanidade).

Distante, caminha na direção da estrada fosforescente. É mudo, não fala. É manco, usa bengala. Os calcanhares encostam-se. Anda como um renitente, envelhecido, coitado. As mocinhas a rodearem o solitário estão na flor da idade, o pólen lhes arde, o mel escorrendo molha as pétalas sedentas de sexo e amor. Não são para ti, velho ladrão de marmitas, desonesto, aviltante.

A falta de higiene é nítida, como fotografias capturadas por um olhar perfeccionista. Não tens esse olhar. O teu é um recorte, a esperança em meio aos destroços da guerra passada, um discurso piegas, emotivo, ilusório. (O cinema ilude, encanta). O bigode até lhe alçaria ao topo da oligarquia, dominaria mundos, bolas de plástico, bolhas de sabão, estouram.

Queres a vida ao contrário. Começa morrendo, acaba chorando, limpam-lhe a placenta, forçam o arroto. Ouvi muitas frases de sua autoria, em meio a bares quando me apaixonava. Você, que come folhas, que engole sapos, e gargareja cacofonias, melodias límpidas, inglórias. O sinto fluir no compasso de mãos limpando talheres, mãos limpando maquiagem, – de Calvero, o palhaço – mãos, fracas.

Era pequeno e imitava os trejeitos, tentava, nem todos tem o talento para a coragem. Enrolava o durex preto numa bengala marrom, comprada. Pintava com lápis preto a inquirir um bigode sobre os lábios virgens. Virava os pés imaturos, desprovidos da rigidez para manterem-se alerta, moles, colados, um no outro. Homem máquina, não controlava qual bailarina os espasmos da dança e os reflexos da atuação.

Deita, a pequenina esfera denominada cabeça oca numa cama maciça. E sonha, sonha, sonha, é natal. Cinema, paraíso dos invictos, atestado de insanidade, fuga ao passado. Calça, o médio músculo bombeando espesso líquido detentor da vermelhidão. Desista, Chaplin, a humanidade perdeu-se.

Um beijo atrevido, fortuito, alegre como mariposa bêbada, luzes da cidade, ribalta, ou beliscão nas nádegas.

Em rolos, fitas e chips teus filmes de desejo e alarme.

Luzes da Ribalta; Tempos Modernos; O Grande Ditador

Raphael Vidigal

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6 Comentários

  • Ahhhhhhhhh…. perfeito! Lindo demais! Ficou melhor do que eu imaginava, Raphael! Os vídeos e fotos se enquadraram bem à sintonia das palavras e leveza das informações.
    Não há como falar de Chalie Chaplin sem falar de amor, sem falar de dor, humanidade, dedicação, detalhes… são detalhes da fragilidade do ser humano que perpassa entre passos dançantes e descompassados de Chaplin.
    Ensaiamos tristeza, perda, egoísmo e hipocrisia todos os dias. Fico pensando como deve ser difícil vestir no rosto a marca de tudo isso e expressar o que todos querem guardar sorrindo.

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  • Texto maravilhoso, Raphael! Fiquei, de fato, muito emocionada! Vc é puro talento para as letras. Bjos

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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