Até que um quarto nos separe

“Sobrevivi à morte sucessiva das coisas do teu quarto.
Vi pela primeira vez a inútil simetria dos tapetes e o azul diluído
Azul-branco das paredes. E uma fissura de um verde anoitecido
Na moldura de prata. E nela o meu retrato adolescente e gasto.” Hilda Hilst

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Às 7 da manhã em ponto, o despertador em formato de relógio nas cores azul e cinza, com ponteiros costumeiramente pretos, toca o som de uma sirene aguda como a da ambulância quando em desespero para passar pelos carros na avenida tentando salvar mais uma vida.

Em tédio e desespero, o advogado Carlos Alberto desperta ao som de seu despertador-relógio e ouve na rádio o “Cotidiano” de Chico Buarque a lhe conformar.

Rádio preto velho da marca Phillips, maltratado pelo tempo e pelas vezes em que foi derrubado do criado-mudo castanho ao lado de sua cama, sem querer, num impulso de insônia e medo.

Rádio que ficou ligado a noite inteira, pois Carlos Alberto só dorme com ele acordado, e agora o desliga pois já está de pé.

De pé percebe-se o quão grande e forte é aquele homem moreno, de negros e ralos cabelos cacheados, olhos cinzas e carnuda boca. Não basta dizer que ele é brasileiro nato, casado há mais de 30 anos, no pesar de seus 54, pai de um casal cuja mãe dorme na mesma casa, em outro quarto, outro tempo e espaço.

Vânia Vaz desperta ainda mais cedo, às 6, e já se põe a preparar o café da manhã para os filhos, que em trinta minutos terão de ir para a aula.

A juventude que estampa no rosto de pele clara, lisa, nos cabelos cuidadosamente prancheados e bem cuidados, nos vestidos longos adequados a grandes festas que ela desfila por cozinhas e salas, apenas disfarça a velhice presente em seu casamento e na paciência com o companheiro de casa. As aparências se enganam.

Carlos Alberto e Vânia Vaz relutam insistentemente em discutir qualquer assunto que ultrapasse um cordial “bom dia”, “boa tarde”, e chega de boa noite, pois as últimas passadas juntas foram péssimas, e agora já fazem parte do passado. Cada macaco na sua noite.

Luiz Gustavo,17 anos, filho mais velho do casal, primogênito, alto, robusto, forte graças a sessões de academia 5 vezes por semana, refeições recheados por proteínas e carboidratos, já se interessou mais pela situação dos pais, hoje em dia seu ar indiferente que perpassa pelo olhar que relembra o de um peixe bem morto e pelas poucas palavras dentro de casa, não deixam dúvidas de que se ele não se dá bem com a divisão e a esconde muito bem em seu quarto, seu refúgio, onde possui uma cama de solteiro, computador de tela plana onde ao fundo se vê uma foto de seus amigos, uma televisão com dvd e o resto são armários, livros, roupas e coisas para não se ver.

No início ele até tentou convencê-los a dormirem juntos novamente, mas ao perceber que a separação seria apenas territorial, e que de um jeito ou de outro teria os dois na mesma casa, aceitou e achou justo, ele próprio não agüentava a mesma menina por mais de 30 dias, quem dirá anos. E fez-se uma espécie rara de “Justiça Salomônica”, partiu-se o bebê ao meio e ele continuou com as duas partes. Assim viveram felizes para sempre.

Ao contrário, Maria Luiza, 12 anos, olhos cinzas como os do pai, cabelos prancheados desde cedo pela cultura e pela mãe, demonstra nos passos e nas muitas palavras toda a ansiedade de uma vida, um casamento de 30 anos que ela viu durar muito pouco.

Por mais que puxe pela memória, a lembrança que ela sempre tem é do pai num caminho e a mãe em outro, quando iam fazer compras alguém sempre ficava para trás. Pois se não vão mais às compras ela continua a ver cada um para um canto, embora as discussões presenciadas por ela tenham sido poucas, ela sente falta de um carinho em dobro, um passeio em quarteto, um almoço de domingo com a família.

Suas confidências são guardadas em um diário lilás, com tiras amarelas, rabiscado por pseudo-assinaturas de “melhores amigas para sempre” e “namorados amores da minha vida” na capa. Ao interior do livro só ela tem acesso.

O que nos é permitido acessar são as fotos de sua família mais unida que por um esbarrão nos corredores da casa de dois andares. No primeiro fica a cozinha, despensa, área de lavanderia, sala com televisão e 3 quartos, pertencente à mãe e aos filhos. O segundo é todo do pai, seu escritório e quarto.

Essas fotos são mostradas com carinho e saudade por Maria Luiza, que é quem parece mais se importar com a situação, a separação e seu coração. Em seu quarto vimos em cima de sua cama um coração bem vermelho de pelúcia, que seus pais lhe deram no seu aniversário de 6 anos, quando ainda estavam juntos.

Mas as manias, os roncos altos e sonoros, as levantadas madrugada afora em busca de comida na geladeira de Carlos Alberto fizeram Vânia se separar dele, ao mesmo tempo em que seu temperamento explosivo, suas diferenças de opinião política e sua falta de paciência com os trejeitos de Carlos Alberto o fizeram se separar de Vânia após 20 anos de amor e tortura.

Os votos da Igreja continuam firmes sob o ponto de vista legal, mas não perante os olhos de Deus, que há muito já os vê mantendo apenas uma divisão de cômodos, como se faz com um colega de república quando se está na faculdade.

Mas Carlos Alberto e Vânia não são seres humanos diferentes e privilegiados, em uma pesquisa feita com 15 casais com mais de 18 anos de relacionamento, 82% dos parceiros, sejam eles homens ou mulheres, estão insatisfeitos com a mesmice que o casamento tem se tornado, desses 82%, 45% dizem que já pensaram em se separar e apenas 27% dizem que conversam ou já conversaram sobre os problemas de relacionamentos com seus companheiros. A cultura do casamento eterno cai cada vez mais por terra e pela Terra se difunde, as separações, sejam elas legais e oficias ou não, são cada vez mais freqüentes em tempos talvez menos modernos que os de Chaplin.

O corre-corre do dia a dia e os dias e mais dias onde “ela faz tudo sempre igual, me sacode às 6 horas da manhã” não suportam mais casamentos que sejam eternos enquanto durem. Não há tempo nem disposição da maioria dos casais para arrumarem a cama, muito menos para dormirem juntos sobre ela.

Carlos Alberto se mostra satisfeito com a situação atual, casado e desquitado, ambíguo e feliz, mostrando sempre os dentes brancos e limpos ao sorrir, e no olhar sério que impõe com o toque intimidador de suas sobrancelhas cheias e negras. Admite que “não é o melhor dos mundos, o que eu sempre quis para minha família, mas é o melhor que eu posso fazer, pensando não só em mim, mas em todos”.

Vânia Vaz acredita que fez a escolha certa ao se separar apenas ela de seu marido, mantendo seus filhos com pai e mãe debaixo do mesmo teto, de vidro é verdade, mas ainda teto. Esboça um sorriso de canto de boca, irônico, ao dizer que “agora eu suporto o Carlos Alberto, ele é uma ótima pessoa à distância, guardadas as devidas proporções”, e gargalha.

Maria Luiza diz e demonstra nos insistentes convites para passeios a quatro, a esperança e a ingenuidade que toda pessoa mais nova tem de um dia ver aquele conto de fadas dar certo. Nas palavras dela: “papai e mamãe ainda vão resolver isso, é só sentar e conversar, dar tempo ao tempo, enquanto isso não acontece, a gente espera, mas eu sempre vou ter esperança de ver os dois juntos novamente, nada tira isso da minha cabeça”.

Luiz Gustavo já alcançou os 17 anos e o ceticismo, para ele mais vale que seus músculos continuem torneados que qualquer esforço que torne o casamento de seus pais real.

Essa tendência, cada vez mais em voga na nossa sociedade, talvez passe como a moda, ou talvez tenha vindo para ficar, mas o até que a morte nos separe, já deu lugar a um quarto.

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Raphael Vidigal

Produzido para a matéria de Jornalismo Literário da PUC Minas em 2008.

Imagens: pintura “O beijo” de Klimt; e escultura “O beijo” de Rodin; respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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