Antônio Maria criou clássicos do samba-canção e da dor-de-cotovelo

*por Raphael Vidigal

“Me inclino sobre o fogo de teu corpo noturno
e não apenas teus seios amo mas o outono
que esparge pela névoa seu sangue ultramarino.” Pablo Neruda

As noites do Recife refulgem nos galhos das árvores a dor e a saudade. As copas molhadas de orvalho dão sombra aos olhos que choram, choram. Raízes e caules tremem como duas pernas bambas, no suspiro do vento que repele o frevo e amacia as tensões, os nervos. O copo pela metade, acompanhado por um cigarro, transborda a poesia de ‘um homem chamado Maria’, dono de peripécias e impropérios proferidos no Rio de Janeiro, ao lado de gente casta como Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi (o baiano, também vizinho), Fernando Lobo (pernambucano) e Abelardo Barbosa (outro conterrâneo, conhecido por Chacrinha). No horizonte da música brasileira, traduziu sementes e flores geradas no esplendor da manhã, fosse ela alegria ou tristeza, carnaval ou dor-de-cotovelo. Fosse Antônio Maria, um sujeito com mais zelo ao corpo, não teria nos deixado tão cedo, talvez nem mesmo deixado canções de alma e coração, que em um descuido de momento levou, mas o tempo semeou e regou.

Frevo nº 2 do Recife (frevo, 1951) – Antônio Maria
Vivendo entre dois opostos, Antônio Maria descobriu ainda menino a riqueza e a pobreza. Filho de família abastada, o pai era dono de usina na região, recebeu contato desde pequeno com a tradição européia de piano e aulas do idioma francês. No entanto, após a derrocada dos negócios da empresa, perdeu o pai e as benesses advindas do dinheiro.

Rumou para o Rio de Janeiro, onde não foi feliz, e regressou de cabeça baixa. Casou-se com Maria Gonçalves, trabalhou no rádio de Fortaleza, onde conheceu Dorival Caymmi, o pintor Di Cavalcanti e o escritor Jorge Amado. Trava desde os 17 anos conhecimento na área comunicativa e decide novamente apostar na Cidade Maravilhosa. Desta feita, o sonho vinga.

Já com dois filhos para criar, Rita e Antônio Maria Filho, instaura-se para ficar. Contratado por Assis Chateaubriand como diretor da TV Tupi, escala rapidamente os degraus da escada e emplaca um fenômeno atrás do outro: colunas, crônicas, programas de TV, rádio até que chega, por último, a hora e a vez da música.

O ‘Frevo nº 2 do Recife’, pertencente a uma composição que totaliza cinco do gênero, é o primeiro a alcançar certa repercussão, em 1951, lançado por Luís Bandeira & Severino Araújo com sua Orquestra Tabajara, posteriormente regravada por Maria Bethânia. Após algumas obras menos conhecidas já terem sido inclusive gravadas por nomes como Aracy de Almeida e o Trio de Ouro, Maria começava a sentir o gostinho da fama musical, e dele não largaria mais a colher.

“Quando eu me lembro, o Recife tá longe
A saudade é tão grande
Eu até me embaraço”

Menino grande (samba-acalanto, 1952) – Antônio Maria
Antônio Maria costumava dizer que só durante o sono têm-se a mais pura e ingênua condição humana. Conhecido pelo lado extrovertido e debochado, sempre cercado por uma horda de fiéis e incansáveis amigos que aboletavam a madrugada sem direito a bandeira branca, o compositor jorrava nas composições as angústias e medos que carregava. Solidão e cansaço eram temas freqüentes. Apontado por críticos junto de Nora Ney como um dos nomes do chamado samba-canção ou dor-de-cotovelo, compôs o samba-acalanto ‘Menino grande’ em 1952. Lançado com enorme sucesso pela companheira de copos e fossa acima citada, exprime a carência de um menino grande implorando colo, proteção e sonho.

“Dorme, menino grande
Que eu estou perto de ti
Sonha o que bem quiseres
Que eu não sairei daqui”

Ninguém me ama (samba-canção, 1952) – Antônio Maria e Fernando Lobo
Os versos se mistificaram a tal ponto que ganharam ares de dito popular. Só quando uma tradição ganha a dimensão dos braços do povo, é que se pontifica. Qualquer que seja o tempo, a idade e a razão, ‘Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de meu amor’, virou-se ao espelho dos reflexos noturnos dos mais distintos solitários. A imagem de uma pessoa desfolhando uma flor de pétalas brancas, miolo amarelo e caule verde, ilustra bem o sentimento passado.

Parceria de Antônio Maria com o amigo dos tempos de juventude, Fernando Lobo, confortou várias gerações dos que sofrem por amor, desde o início solucionada pelo canto grave e falado de Nora Ney. Inclusive há quem repita um caso nunca desvendado, de quando Antônio Maria entrevistou a candidata a deputada do Rio de Janeiro, Sandra Cavalcanti, e perguntou-lhe se esta era mal amada, ao que ela respondeu: “Posso até ser, senhor Maria, mas não fui eu que fiz aquela música, ‘Ninguém me ama’”.

“Vim pela noite tão longa, de fracasso em fracasso
E hoje, descrente de tudo, me resta o cansaço
Cansaço da vida, cansaço de mim
Velhice chegando, e eu chegando ao fim…”

Se eu morresse amanhã de manhã (samba-canção, 1953) – Antônio Maria
Autor de lindas poesias publicadas em forma de crônica, criador de jingles inesquecíveis, Antônio Maria aprontava das suas fora das quatro linhas da arte. Conhecido pelas tiradas sarcásticas e bem humoradas, conta o escritor Carlos Heitor Cony da vez em que o compositor e amigo fez-se passar por ele a fim de levar para a cama uma mulher que paquerava no avião e que lia o livro de Cony. O que ocorreu de fato, só que Maria completava o caso para o amigo às gargalhadas: “acontece que você broxou, Cony!”. Dizia que a caricatura era mais importante que o retrato, e na sequência arrematava com uma amargurada canção de 1953, ‘Se eu morresse amanhã de manhã’, lançada por Dircinha Batista e regravada por Clara Nunes no especial ‘Brasileiro, Profissão Esperança’. Um homem ambíguo. De quem ainda muitos se lembram.

Preconceito (samba, 1953) – Antônio Maria e Fernando Lobo
Nem sempre o compositor tem autoridade para definir os rumos que sua canção irá tomar. Pois este é um ótimo indício. Como disse Mario Quintana, ‘a poesia não se entrega a quem a define’. Escrito com Fernando Lobo, o samba ‘Preconceito’, de 1953 foi lançado pela musa da dor-de-cotovelo Nora Ney, que pelo atrevimento da letra denominou a partir de então outro fã clube para si. Tomada nos braços dos homossexuais como hino, foi também regravada por Maria Bethânia e Cazuza. Antônio Maria, mesmo sem querer, colocou outra pedra filosofal no centro da música brasileira.

Valsa de uma cidade (valsa, 1954) – Antônio Maria e Ismael Neto
Cantarolando, Antônio Maria fazia suas músicas. Melodia e letra, num único gesto de língua e paladar. Era questão de sentir o gosto, e tatear no escuro o clima apropriado ao sentimento que se queria dizer. Mesmo assim, sem executar com exatidão nenhum instrumento musical concebido como tal, era tido por ‘o homem de 7 instrumentos’, devido à habilidade assustadora de se impor em várias funções da imprensa e principalmente da escrita.

No entanto, mesmo em vista de enormes sucessos provocados por sua incursão solitária no mundo da composição, não foram raras as vezes em que foi ao encontro da companhia de um amigo. Ismael Neto era um desses, com quem esculpiu, entre outras, ‘Valsa de uma cidade’, ode alegre e entusiasmada para o Rio de Janeiro que teve que aprender a solavancos e sopapos a respeitar e amar, Antônio Maria, um de seus compositores mais requisitados nas noites de orgia. E a valsa é uma exaltação solar, mas como não poderia deixar dizer encerra em mágoa amorosa, onde ele observa estar o amor em tudo. Lançada em 1954 por Lúcio Alves, regravada por vários outros e outras.

“Rio de Janeiro, gosto de você
Gosto de quem gosta
Deste céu, deste mar
Desta gente feliz”

Canção da volta (samba-canção, 1955) – Antônio Maria e Ismael Neto
Dolores Duran e Antônio Maria foram amigos de mesa de bar, copo e coração. Dois geniais e apaixonados compositores homenageados no especial ‘Brasileiro Profissão Esperança’, dirigido por Paulo Fontes e estrelado por Paulo Gracindo e Clara Nunes. Pelas semelhanças de que partilhavam, tanto em vida quanto em obra, tiveram as canções costuradas num misto de irreverência e alarde.

Alarde de um coração partido. Pois faziam pouco barulho ao abrir o baú que guardava o maculado e desgastado presente sentimental. No entanto, era um barulho intuitivo e intenso, e por isso mesmo, natural e sincero. ‘Canção da volta’, samba-canção escrito em 1955 com Ismael Neto foi lançada por Dolores Duran, na interpretação que entendeu melhor todos os tesouros descobertos no mar de Antônio Maria. Dolores navega com propriedade de causa e casa.

“Nunca mais vou ouvir
O que o meu coração pedir
Nunca mais vou fazer
O que o meu coração mandar”

Suas mãos (samba-canção, 1958) – Antônio Maria e Pernambuco
Outro parceiro fundamental na obra de Antônio Maria é o conterrâneo conhecido pelo sutil apelido de Pernambuco. Como fundamental se tornou no repertório de todos que apreciam um samba-canção a maravilhosa ‘Suas mãos’, de 1958. A música começa como uma prece, uma busca, procura infinita e inútil do que se perdeu, no caso, as mãos da mulher amada, que um dia em sinal de carinho tocaram a palma do compositor. Palmas imaculadas que ao final do número, na voz de Maysa, Nelson Gonçalves e etc., se servem do banquete argucioso de Antônio Maria, como passarinhos bicando migalhas de pão. Aquela é a fome do simples e belo.

“Ah, suas mãos,
Onde estão?
Onde está o seu carinho?
Onde está você?”

Manhã de carnaval (samba, 1959) – Antônio Maria e Luiz Bonfá
‘Manhã de carnaval’, transformou-se numa das canções mais regravadas nos Estados Unidos sob o signo do jazz. Composta para a trilha sonora do filme Orfeu da Conceição, o samba de 1959 ganhou a interpretação, entre inúmeros outros, de Agostinho dos Santos e Pery Ribeiro, estandartes da bossa nova.

A demora de Antônio Maria para encontrar uma letra adequada à melodia de Luiz Bonfá por muito pouco não fez o segundo desistir da parceria sugerida pelo escritor Rubem Braga. Mas a persistência foi premiada com um belo sinal para os ouvidos de que a beleza ocasiona-se em tempos diversos e incongruentes. Sóbria e fantasiosa, a esmeralda carnavalesca lembra os primeiros compassos de clássica composição de Robert Schumann.

“Canta o meu coração
Alegria voltou
Tão feliz a manhã
Deste amor”  

O amor e a rosa (samba, 1960) – Antônio Maria e Pernambuco
Floresce no ramo fresco e molhado a rosa de Antônio Maria. Espigas de milho crescem no milharal. Sem corvos e espantalhos, a magia. O arco-íris parece encher as bochechas de ar e lançar divertidas sete notas musicais. O madrigal de cruzes do compositor refaz a aurora com aquarela de criança. ‘O amor e a rosa’, samba esperançoso de 1960, na companhia de Pernambuco, sorri.

“Guarda a rosa que eu te dei,
Esquece os males que eu te fiz
A rosa vale mais
Que a tua dor”

Lido na Rádio Itatiaia por Acir Antão dia 18/03/2012.

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8 Comentários

  • Confesso que nem sabia o tamanho da contribuição de Antônio Maria. Bela iniciativa de homenagear cantores e compositores que fizeram história. Parabéns a esquina musical.

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  • Eis um bom momento para lazer com excelente arte…
    Excelente, caríssimo Raphael! Abraços:)

    Resposta
  • Antonio Maria é dos compositores brasileiros mais celebrados no exterior, assim como Tom Jobim e Ary Barroso. Suas canções são perfeitas para qualquer desesperançado da vida ou para quem não tem mais “motivos para viver” (quem padece de doenças incuráveis e que está com o “pé na cova”!!!). Superstars como Julio Iglesias, Nat “King” Cole. Seu tema mais famoso é “Manhã de Carnaval” em parceria com Luiz Bonfá, nos países de língua inglesa é conhecida como “The Gentle Rain”, gravada ate por ninguém menos que Perez Prado “O Rei do Mambo”!! – Márcio Silva de Almeida/Joinville-SC

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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