“Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho – o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.
Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo.” Ferreira Gullar
Antes de tornar-se clássico, Ferreira Gullar percorreu trilha em movimentos importantes da poesia brasileira. Afora rótulos sua obra, marcadamente de acento grave, caracterizou-se, do início ao fim, pela passionalidade, que o diga sua mais célebre definição do ofício: “poesia nasce do espanto”. Quando de sua mais ambiciosa proposta estilística, ao desejar “explodir com a linguagem”, o que reportou acerca de “A Luta Corporal”, ainda assim Ferreira não foi capaz de desvencilhar-se, por completo, de certa lírica, certo lirismo. Natural do Maranhão Gullar despertou ao longo da existência sentimentos díspares: foi alvo da admiração de Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto e do desprezo de Augusto de Campos e seus pares no neoconcretismo brasileiro. Nada que tenha influenciado, a rigor, o melhor de sua poesia, baseada entre as décadas de 1950 e 1980, período em que o país também mudou radicalmente.
Incentivador fervoroso do comunismo, Ferreira migrou, lenta e gradualmente, para postura crítica em relação ao regime, até tornar-se um reacionário ímpar. Postura que afetou também seu ímpeto criativo, ao acomodar-se em terreno em que haveria cada vez menos risco para sua poesia. Nos últimos anos os momentos em que Ferreira recorreu a clichês sem brilho ultrapassa o de toda a produção de suas décadas realmente inventivas. Se nem tanto na poesia, certamente em seus artigos. Os excessos de Gullar também contagiaram outras artes, como na música em que, para o bem e para o mal, manteve sua principal característica. São passionais os versos por ele traduzidos de “Borbulhas de Amor”, imortalizada na gravação de Fagner, como também “O Trenzinho do Caipira”, melodia de Heitor Villa-Lobos, e “Onde andarás?”, belíssima canção lançada por Caetano Veloso. Mesmo sem ser Drummond, Gullar também teve várias faces.
Raphael Vidigal
Imagens: Divulgação e Arquivo.