*por Raphael Vidigal
“Até tu, matéria bruta,
até tu, madeira, massa e músculo,
vodka, fígado e soluço
luz de vela, papel, carvão e nuvem,
pedra, carne de abacate, água de chuva,
unha, montanha, ferro em brasa,
até vocês sentem saudade,
queimadura de primeiro grau,
vontade de voltar pra casa?” Paulo Leminski
Ao forrar as paredes do nosso quarto de misérias – não com “manchetes de jornal”, como canta Cazuza na letra de “Um Trem para as Estrelas”, parceria com Gilberto Gil – mas imagens de plantas retiradas de livros e enciclopédias, Afonso Tostes as invade com um talho profundo, numa espécie de vergastada – ao menos é essa a impressão diante de uma das obras da exposição “As Coisas Que Ainda Existem”, que ele estreia nesta quinta (10), no Rio de Janeiro. Tudo ali parece vivo e morto ao mesmo tempo. Mineiro de Belo Horizonte, o artista deu início à nova série, que compreende cerca de dezesseis trabalhos inéditos, durante a pandemia de Covid-19 que nos atingiu.
“A pandemia me afetou na medida em que eu me afastei de tudo, como todo mundo, e fui para um lugar bem rural no interior de Minas. Durante o primeiro período da pandemia, eu não fiz nada, não tinha cabeça, nem ânimo, nem estímulo. Mas, no segundo momento, onde se começou a pensar que já existia uma vacina, comecei a recuperar essa vontade e aí o isolamento no interior me proporcionou pensar e repensar os novos trabalhos”, diz Tostes. As queimadas e os incêndios florestais na região de Mirantão, onde ele se encontrava, o levaram a assimilar o carvão em suas criações. O material de aspecto rijo e textura preta que se esfarela com uma incrível facilidade se destaca na mostra.
Refletir. “Eu acho que a arte, de maneira geral, deve ou pelo menos deveria ser uma espécie de reflexo ou reverberação do tempo presente. E a arte contemporânea, mais do que nunca, com as liberdades e os múltiplos meios precisa de alguma forma estar conectada com os anseios, angústias e alegrias do que acontece à nossa volta”, sustenta. No caso de Tostes, a violência desenfreada e dramaticamente estimulada – principalmente a partir do atual governo – contra o meio-ambiente se faz notar. Fiada no recolhimento de materiais descartados, a perspectiva do artista nos coloca em confronto com nossas entranhas, frente a uma megalomania consumista, e que aniquila tudo.
“Essas conexões dependem muito dos pontos de referência que a gente tem, quais são as linhas que guiam a produção de cada artista. E acho que essas conexões têm a ver com afeto, carinho, cuidado. Não acho que, no meu caso, essa produção seja panfletária, mas ela não deixa de refletir a política, a sociedade, como as pessoas se tratam”, avalia. Na opinião de Tostes, “o mundo anda muito empobrecido em relação às reflexões e à liberdade”. “Principalmente a liberdade de pensamento. Não os artistas, de maneira geral, mas a população está muito atrelada à busca de lideranças que digam aquilo que elas querem ouvir e não há muita reflexão. O pensamento livre, que é o pensamento crítico, sobretudo, está anestesiado por falsas promessas”, opina.
Libertar. Com a capacidade crítica empobrecida, o momento político mundial é “muito ruim”, define Tostes, para usar uma palavra suave. “As pessoas também acabam se enxergando como massa de manobra e não veem muito como lutar contra o poderio todo que se instala a partir das relações políticas, organizadas em prol de um crescimento que não é para todos”, lamenta. A única receita confiável, segundo o artista, seria, justamente, através da arte e da poesia, das proposições. “Para que a gente consiga estabelecer um pensamento crítico, que é um pensamento libertário também”, conclama. Pois a única e mortal função da arte é propor a liberdade, ou, ao menos, alguma forma de libertação.
Nessa caminhada, ele reserva um lugar especial para Belo Horizonte, onde tudo começou. “Todo esse pensamento artístico que venho desenvolvendo teve início no meio dos anos 80”. Tostes frequentou a Escola Guignard, uma das mais conceituadas na época, antes de ir trabalhar como assistente no ateliê de um pintor. Vivenciando a cidade de Belo Horizonte e os artistas proeminentes do período, se imiscuindo nos movimentos, ele se encantou pelas artes plásticas. “Eu não tinha a menor propensão natural, o que não tem a ver com talento ou capacidade de fazer, mas não estava no meu horizonte de jovem ser artista. As coisas foram acontecendo e despertando meu interesse”.
Origem. Curioso de nascença, Tostes foi se aprofundando nessa atividade, “muito porque não conseguia me enxergar em nenhuma outra profissão”. Como quase todo mundo de sua geração, ele era neto e filho de pais oriundos do interior, dada a pouca idade da capital mineira, o que o levou a percorrer essas plagas. A observação, então, passou a ser a sua principal aliada: primeiro para fora, depois para dentro, em um movimento íntimo de conexão com o exterior.
“E aí tem toda uma influência nos meios, de como as pessoas resolvem os problemas delas. Nas minhas primeiras esculturas, há uma série com escoras, que são formas e maneiras com que as pessoas lidam com soluções práticas do dia a dia, usando o material que lhes cai à mão”, exemplifica. “A madeira entra muito nesse processo, mas não apenas, há diversos outros materiais que são utilizados meio de improviso. Tento trazer esse pensamento e a primeira vez que o vi foi em Minas Gerais, nas fazendas, nas ruas, cidades pequenas. O material que está por ali. E que eu trago para o meu trabalho até hoje”, conclui.
SERVIÇO
O quê. Exposição “As coisas que ainda existem”, de Afonso Tostes
Quando. De 10 de março a 29 de abril, das 16h às 20h
Onde. Mul.ti.plo Espaço Arte (rua Dias Ferreira, 417, 206, Leblon, Rio de Janeiro)
Quanto. Gratuito