A morte da mãe de João Cornélio

“mas a política que domina a nossa edilidade não é aquela que Bossuet definiu. A nossa tem por fim fazer a vida incômoda e os povos infelizes; e os seus partidos têm por programa um único: não fazer nada de útil.” Lima Barreto

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Ainda na sala da lady. Embora um recuasse e o outro não percebesse. Na hora em que a botija faz o estreito colo virar asa. Pelos lados o detém: num abraço ameno. Os biscoitinhos fritos são aceitos: um a um: mais de um: prenhe os dedos. Para o café a espera que talvez nunca chegue. Oferece inédito prato de biscoitinhos fritos a fim de interromper o aperto. Enquanto o papo desbarata o bico de pelicano: comem por deferência. A insuficiente conversa fiada na terra não se destina a costurar a camisa aberta, nem a pregar os botões soltos da calça comprada na feira, muito menos a mexericos no caule da nêspera esbelta. Para acalentar o dia preenche a tarde ignorante de tarefas: das básicas às irrestritas. João Cornélio tem porte e gala para botar medo no ragazzi e no guri. O chapéu de áspero couro descai da cabeça ao entrar em qualquer recinto, parte da educação recebida através da mãe, uma católica enferma que há tempo agoniza numa retinta cama.

A Fazenda do Maracujá reserva a morte: para a raquítica madre. Proíbe que a levem dali naquele estado, e o líquido espesso parece lágrima, no entanto algo mais profundo, que é verde e transborda: uma alga sai da íris bem maculada. O sonho da mãe de João, o cortês gigante, é morrer na cama em fiapos, já ela de gente um fiapo: comprido, lânguido: espera na cama que é ela e é ela mesma morte. O descanso eterno não pode esperar. Projeta expectativas: a morte da mãe de João: tu és produto que dignifica a ganância. O arrependimento inoportuno beira a indiferença do homem: o gigante Cornélio recolhe-se à rama, plano duma paisagem que abandona: um anão. O rosto como o tempo estático e em pânico. Da grossura sem retoques. Para o galã a sorte: jaz morta a mãe. Na morada grande, de enorme cama, fresca cor: desfeita dos mofos, dos cheiros, dos ratos, (lembranças moídas paisagens) traças, retratos em preto e branco e amarelo amarelando, amarelecido, amarelado. Nada habita o redor: vago. Não tem enredo a morte. Não tem história.

Os dentes da defunta entregues à taça de cristal do conjunto último, comprado para a faminta data: um presente: uma caridade: boa alma dos homens: altruístas, santos. Uma avalanche de pessoas nunca vistas, quando viva, vem vê-la morta. A primeira velha a morrer toda torta na vivenda moderna, endireitada. Recebe aplausos. Há comoção nas ruas, a rádio anuncia a plenos pulmões o último lance: “A morte da mãe de João Cornélio, o gigante que é anão, prestes a acontecer na propriedade recém adquirida, elegante e querida, em 5…, 4…, 3…, 2…, 1… ! Fulguras Ó Brasil Clarão da América!!! Foguetes!!! Trombetas!!! Demônios!!!”. Mas a morte na cama em fiapos, a mãe de João Cornélio não pôde.

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Raphael Vidigal

Pinturas: “Quarto em Arles”; e “Paisagem com corvos”, de Vincent Van Gogh, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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