A folia e a dor na música do boêmio Herivelto Martins

*por Raphael Vidigal

“Nem sequer no apartamento
Deixaste um eco, um alento
Da tua voz tão querida
E eu concluí num repente
Que o amor é simplesmente
O ridículo da vida” Herivelto Martins & Aldo Cabral

O carioca Herivelto Martins compôs clássicos da canção brasileira ao longo de frutífera carreira que também incluiu as atividades de violonista e cantor do Trio de Ouro em todas as suas formações, tendo sido ele o principal idealizador e entusiasta do conjunto. A briga espalhada através de jornais e músicas com Dalva de Oliveira rendeu-lhe a pecha de arrogante, mal humorado e machista, mas mais do que isso, rendeu pérolas do quilate do nome que acompanhava o trio no qual cantou por mais de cinco décadas, até o último ano de sua vida.

“Palmeira Triste” (samba-canção, 1937) – Herivelto Martins
Carmen Barbosa nasceu no Rio de Janeiro, no dia 4 de setembro de 1912, e morreu no dia 3 de setembro de 1942, um dia antes de completar 30 anos, numa trágica coincidência de datas. Carmen tinha uma saúde frágil em razão da diabetes, o que a levou a amputar uma das pernas pouco antes de falecer. A partida precoce de Carmen deixou o Brasil sem uma de suas cantoras mais promissoras.

Influenciada pela xará, a estrela internacional Carmen Miranda, ela começou atuando como corista de gravações da Victor, até ter a primeira chance de maneira inusitada, quando a cantora Madelou de Assis faltou às gravações e ela foi convocada para substituí-la, em 1934. Carmen não desperdiçou a oportunidade. Incentivada por Benedito Lacerda, que aparece tocando flauta em praticamente todas as suas 27 gravações, lançadas entre 1935 e 1940, Carmen Barbosa obteve sucesso com músicas como “Palmeira Triste”, samba-canção de Herivelto Martins, regravada por Nelson Gonçalves…

“Dois Corações” (samba-canção, 1942) – Herivelto Martins e Waldemar Gomes
O romance entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins foi tão intenso quanto profícuo, e rendeu vários clássicos da canção brasileira. Infelizmente, a fase de maior criação acerca do relacionamento foi justamente aquela em que eles andavam às turras, antes de um desfecho triste para ambos os lados, com mútuas acusações e um ressentimento que permaneceu até o fim da vida. No entanto, quando ainda estavam perdidamente apaixonados, Herivelto compôs, em parceria com Waldemar Gomes, uma ode ao amor que não deixa dúvidas: “Quando dois corações/ Se amam de verdade/ Não pode haver no mundo/ Maior felicidade/ Tudo é alegria/ Tudo é esplendor”. A música foi lançada em 1942, num dueto de Dalva com Francisco Alves, os dois maiores intérpretes da época.

“Praça Onze” (samba de carnaval, 1942) – Herivelto Martins e Grande Otelo
Em 1941, quando ficou sabendo da intenção da prefeitura de demolir a Praça Onze, abrigo dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, Otelo indignou-se e escreveu versos românticos e tristonhos sobre o fato. Então levou a letra para músicos como Wilson Batista, Max Bulhões e Herivelto Martins, a fim de que a musicassem. Nenhum deles se interessou muito, mas o azar de Herivelto era que esse o via todo dia, pois os dois trocavam-se juntos no Cassino da Urca. Herivelto dizia que não cabia samba naquela letra, pois o que Otelo tinha escrito era um romance, com versos do quilate de “Oh Praça Onze, tu vais desaparecer”.

Eis que devido à insistência diária do noviço compositor, Herivelto irritou-se e começou a cantar de improviso versos sambados, dizendo para o humorista: “O que você quer dizer é isso: vão acabar com a Praça Onze, não vai haver mais escola de samba, não vai…”, Otelo empolgou-se e começou a escrever ali mesmo os outros versos da canção, enquanto Herivelto tocava a melodia no violão.

Quando ficou pronta, a música foi gravada pelo Trio de Ouro com a companhia de Castro Barbosa, e trouxe na execução uma novidade inventada por Herivelto e que fez grande sucesso entre os foliões, o uso do apito para dar ritmo. Todos que sentiam a perda da Praça cantaram e dançaram na avenida a música que dividiu o prêmio de melhor samba do ano de 1942 ao lado da clássica “Ai que saudades da Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago. Grande Otelo ria como fazia rir, apesar da tristeza pela perda da praça, ele conseguiu o que queria.

“Lá em Mangueira” (samba, 1943) – Herivelto Martins e Heitor dos Prazeres
A união de bambas da tarimba de Herivelto Martins e Heitor dos Prazeres não poderia resultar em outra coisa: um clássico da música brasileira. Foi o que os dois criaram com “Lá em Mangueira”, samba lançado em 1943 para saudar a Estação Primeira. A primeira gravação da música foi feita pelo Trio de Ouro, integrado pelo próprio Herivelto, Dalva de Oliveira e Nilo Chagas. Posteriormente, Heitor dos Prazeres foi outro intérprete da canção, que ainda ganhou registros de Zeca Pagodinho, Martinho da Vila e Os Originais do Samba. “Lá em Mangueira/ É que o samba tem seu lugar”, afirmam os versos…

“Bom dia, avenida” (samba, 1944) – Herivelto Martins e Grande Otelo
Grande Otelo aventurou-se pela primeira vez a ter “mania de compositor” no fim da década de 30, quando sua música “Vou pra orgia”, em parceria com Constantino Silva, foi gravada por Nuno Roland na Odeon. Em setembro daquele mesmo ano, atuou ao lado de Carmen Miranda no Cassino da Urca, naquele que seria o último show no Brasil da Pequena Notável.

Após o sucesso do samba em parceria com Herivelto sobre a “Praça Onze”, Grande Otelo arriscou com êxito novamente sua veia musical. No ano de 1944 escreveu o que seria o complemento da história da praça. “Bom dia, avenida”, também composta com Herivelto, pedia licença às autoridades para que os sambistas pudessem ocupar com suas escolas a nova avenida Presidente Vargas, afinal eram eles que haviam construído a história da música naquele palco. O samba foi gravado pelo Trio de Ouro e o humorista pôde desfilar na avenida, com voz de tenorino, sua ópera brasileira.

“Izaura” (samba, 1945) – Herivelto Martins e Roberto Roberti
“Izaura” capta um indivíduo em momento parecido com o do protagonista de “Trem das Onze”, samba de Adoniran Barbosa lançado 20 anos depois. Desta feita, porém, não é a mãe que espera o apaixonado namorado, mas sim o trabalho. Ele tenta, de todas as maneiras, convencer a sua amante de que, mesmo contra a vontade, terá de deixá-la, afinal de contas “se eu cair em seus braços/não há despertador que me faça acordar”, argumenta. O episódio, ao mesmo tempo insólito e cômico revela uma típica cena de costumes, no que Herivelto Martins e Roberto Roberti colocam-se como autênticos cronistas. Daí, por certo, sua imensa identificação junto ao público, assimilada também pelo ritmo. Foi lançada por Francisco Alves em 1945 e regravada por João Gilberto.

“Caminhemos” (samba-canção, 1948) – Herivelto Martins
Atravessando na época um período conturbado de sua vida sentimental, o compositor Herivelto Martins extravasava em sua música os problemas que o afligiam. Assim, não foi por acaso que saíram, em sequência, músicas como “Segredo”, “Caminhemos”, “Cabelos Brancos” e, por fim, as composições que marcaram a polêmica separação da mulher, a cantora Dalva de Oliveira. Lançada em novembro de 1947, por Nelson Gonçalves, “Caminhemos” firmou-se na preferência popular do país após o Carnaval do ano seguinte. Ao regravar esse clássico da dor de cotovelo, em 1969, Vanusa apostou em um arranjo pop, e transformou o samba-canção em uma balada cheia de suingue. Marília Medalha também a regravou, com toda elegância.

“Cabelos brancos” (samba, 1949) – Herivelto Martins e Marino Pinto
Os conflitos amorosos entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins deram início a uma briga pública e músicas que se tornaram eternas no cancioneiro brasileiro. Entre elas, “Cabelos brancos”, de 1949, gravada pelo conjunto cearense “Quatro Ases e um Coringa”. O grupo formado pelos irmãos Evenor, José e Permínio Pontes de Medeiros, e ainda André Batista Vieira e Pijuca fez sucesso no final da década de 40 ao lançar o rancoroso samba de Herivelto. Outros sucessos do quinteto foram “Baião de Dois”, de Luiz Gonzaga e do conterrâneo Humberto Teixeira, “Baião”, também da dupla, “Trem de Ferro”, de Lauro Maia e “Onde estão os tamborins” de Pedro Caetano. Em 1957, as cartas do baralho cearense decidiram cada uma trilhar o seu próprio caminho.

“Carlos Gardel” (tango, 1954) – Herivelto Martins e David Nasser
Nelson Gonçalves estava gravando vários tangos da dupla de compositores formada por Herivelto Martins e David Nasser, que resolveram lançar com ele uma versão para o clássico “Mano a Mano”, de Carlos Gardel. Só que havia a necessidade de colocar outra música no lado B do disco de 78 rotações. Por insistência de Adelino Moreira, o cantor resolveu gravar “Meu Vício É Você”. Essa gravação tem um improviso lindo de Jacob do Bandolim, e acabou que fez muito mais sucesso do que o tango do lado A do disco. Entre os tangos gravados com sucesso por Nelson está “Carlos Gardel”, lançado em 1954.

“Mamãe” (bolero, 1959) – Herivelto Martins e David Nasser
O jornalista David Nasser e o compositor e intérprete do Trio de Ouro, Herivelto Martins, compuseram juntos um sem número de canções de sucesso de cunho afetivo. A maioria delas, no entanto, enveredava para o lado dos amores desfeitos, das paixões que não deram certo, e por aí vai, especialmente inspiradas na relação de Herivelto Martins com a cantora Dalva de Oliveira. Mas em 1959 os dois compuseram um bolero em elegia às mães, que pela simplicidade e descrição dos costumes daquela época, rapidamente mostrou seu poder de identificação com uma expressiva parcela do público. Tudo isso sublinhado pela interpretação magnífica e passional de Ângela Maria. Mais tarde a música seria regravada em dueto com Agnaldo Timóteo, também versado em canções para homenagear as mães. “Ela é a dona de tudo, é a rainha do lar…”.

“Por mim, Rosa” (samba, 1979) – Grande Otelo e Herivelto Martins
Sem data definida, estipula-se que no final da década de 70 e início de 80, mais precisamente a partir de 1979, tenha sido quando Grande Otelo gravou dois sambas de sua autoria. O primeiro deles “Por mim, Rosa”, parceria com o compadre Herivelto Martins que fala sobre um divertido entrevero entre marido e mulher, com destaque para os improvisos sacados pelo humorista mineiro.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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