*por Raphael Vidigal
“Sou mestre na arte de falar em silêncio, passei minha vida toda conversando em silêncio e em silêncio acabei vivendo comigo mesmo tragédias inteiras.” Dostoiévski
Quando a acordou pela manhã, seus olhos que, vinte anos antes, viam a vida pela primeira vez, estavam cobertos de lágrimas. Talvez aquela tenha sido a única vez que ela revelara a consciência de um destino trágico. Ao despertar, as lágrimas estavam ali, naturais como os próprios olhos. A irreversibilidade da situação fomentara peso, massa e vigor às lágrimas. Mas tudo era tão pequeno. A vida pulsava na beira da morte, na iminência de encontrar a outra.
O corpo agora parecia frágil, as sobrancelhas haviam desaparecido e o cabelo também já deixara de emoldurar aquele rosto branco como porcelana, onde os olhos aflitos procuravam se concentrar em algum ponto distante no tempo, onde todo aquele martírio começara. O certo é que, até aquele momento, a dor permanecera escondida, não se atrevera a aparecer à luz solar do dia. Apesar da força das imagens, nenhuma palavra tratava de esclarecer a situação vivida.
Como começar? Estava internada em um hospital para tratamento de um câncer nos ossos, que a roía por dentro como uma ratazana esfomeada. Sem que se dessem conta, suas forças eram abatidas lentamente como lâminas arrancadas de um todo complexo e dolorido que era seu corpo. Mas e na alma, como aquilo a afetava? Nada era demonstrado senão uma serenidade impalpável, quase invisível, como a própria cor da porcelana, diferente do branco leitoso que possui consistência e mesmo alguma compactação informe.
Os últimos meses haviam sido de degradação cotidiana, com a perda do movimento das pernas que a relegou a uma maca, e a administração de injeções que tentavam recuperar o seu corpo já tão machucado e frágil. Havia chegado ao hospital em uma cadeira de rodas, com um lenço branco sobre a cabeça raspada, e um sorriso esforçado no rosto, incapaz de admitir e, ao mesmo tempo, esconder as dores pelas quais passava. Em casa, ela chegou a receber somente a visita dos familiares, e daquelas amizades bastante íntimas.
O início do tratamento foi marcado pela esperança, e ela chegou a demonstrar uma melhora do quadro. Nunca se abateu na frente dos outros, nem quando recebeu o diagnóstico, que, para a família, foi um choque. Mas uma moça tão jovem seria capaz de recuperar-se, essa era a mensagem dos médicos. As dores nas pernas haviam se intensificado de tal forma que ela mal conseguia ficar de pé por muito tempo, o que era um sintoma pra lá de esquisito. Há muito tempo que aquelas dores a acompanhavam, desde que começou a fisioterapia.
Na escola, era conhecida pelo temperamento tranquilo, sociável, ligeiramente tímido, porém simpático. Era impossível desgostá-la, nem que fosse por implicância gratuita, pura e simples, porque, ao se aproximar, com aquele sorriso singelo, franco, sem muita pressão nos lábios, natural como as lágrimas que brotaram nos olhos naquela manhã trágica, ela simplesmente desarmava a outra pessoa. Parecia uma boneca de porcelana, mesmo agora, naquela maca.
O hospital jazia tranquilo, sereno, calmo, com as suas paredes brancas, insípidas, higiênicas, e todos aqueles uniformes igualmente impessoais, só a sua mãe gritava, num êxtase de dor, quando ela nasceu, vinte anos antes. Uma nascente tão clara, transparente, estava ao redor da sala na sua chegada.
Pintura: Obra de Monet.