A inocência infantil em ‘Wakolda’ e ‘Milagre na Rua 34’

*por Raphael Vidigal

“Os seus olhos estavam rasos de lágrimas e, voltando-os humildemente para o céu, chorou pela inocência que havia perdido.” James Joyce

Há mais semelhanças do que se pode supor à primeira vista em um filme sobre nazismo e outro que aborda o Natal, como há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia, já diria Shakespeare. No caso, tomemos por base os filmes “Wakolda”, traduzido para o português como “O Médico Alemão”, e “Milagre na Rua 34”, que em alguns casos também foi traduzido como “De Ilusão Também Se Vive”. Distantes no tempo e no espaço os longa-metragem apresentam algo em comum: a presença da inocência infantil no cerne de suas narrativas. “Wakolda” é de 2013; “Milagre” é de 1947…

O primeiro filme foi produzido por França, Noruega, Espanha e Argentina, com direção de Lucía Puenzo, e se passa na Patagônia, a caminho de Bariloche, para onde o médico nazista Josef Mengele teria fugido após o fim do regime e a queda de Adolf Hitler. Conhecido como “O Anjo da Morte”, Mengele acreditava nas teses da superioridade ariana e realizou diversos experimentos humanos com judeus e ciganos nos campos de concentração nazistas. A derrocada do regime não o impediu de seguir em frente com essa ideologia sinistra. Camuflado, ele rapidamente conquista a simpatia de uma família local.

Em especial, da filha do casal, uma garota de 12 anos frequentemente confundida com crianças mais novas, devido ao seu atraso de desenvolvimento físico, resultante de um parto prematuro, por quem o médico demonstra um diferenciado interesse. O que torna tudo ainda mais tenso e controverso é que Mengele é correspondido, em uma relação dúbia que insinua uma sexualidade reprimida por parte de ambos, mas que tem, sobretudo, a admiração da garota como mola propulsora dos acontecimentos que se desenrolam. Em sua ingenuidade infantil, Lilith acredita em Mengele, e não é a única. Longe disso…

A mãe também compra a tese de que é preciso um tratamento hormonal para que a menina adquira uma estatura normativa, ao contrário do pai que, inutilmente, se opõe. Wakolda é o nome da boneca preferida de Lilith, justamente por ser diferente das demais. Mengele pretende convencer a família a construir bonecas perfeitas, em série. Segundo ele, o sangue é o que de mais misterioso existe, e a mistura destrói nossa história, quem somos. Toda a teoria do nazismo exposta sem maniqueísmos nem demagogias. Nua e crua. E terrível. Lilith não deveria, mas acredita em Mengele. É o contrário de “Milagre”.

Ali, temos uma menina ainda mais nova, criada por uma mãe que ignora por completo tudo o que não faça parte do mundo funcional, prático, objetivo. Inclusive o Papai Noel. Acontece que temos um Bom Velhinho que acredita, de fato, ser a personagem que distribui presentes para as criancinhas. E, mérito principal do filme, jamais saberemos se ele está certo ou não. Porque “Milagre na Rua 34” não tem por objetivo apresentar uma resposta, mas, muito mais do que isso, incitar certo espírito de fantasia, romantismo, solidariedade, amor, etc., enfim, sentimentos gregários e edificantes associados às festas natalinas.

Devido à sua criação, Susan não acredita que o Papai Noel é ele mesmo, e até puxa a barba do velhinho para conferir se ele está mentindo. Noutra sequência cativante do filme, ensina o rechonchudo senhor de gorro vermelho a mascar chiclete, o que não sai nada bem ao final das contas. Dirigido por Les Mayfield, o filme se equilibra entre a comédia e um romantismo água com açúcar, cheio de leveza. O principal acontecimento é o julgamento na Corte Superior dos Estados Unidos que pretende definir se aquele senhor é louco ou se, afinal, é realmente o Papai Noel como afirma a torto e a direito para quem quiser ouvir…

A tese encampada pelo filme é que a pequena Susan deveria acreditar no Papai Noel, já que as coisas boas da vida só serão desencadeadas a partir do momento em que ela criar essa fé e recuperar a da mãe, perdida em meios às desventuras da maturidade. Por outro lado, a desgraça na vida da pequena Lilith e de sua boneca Wakolda acontece a partir do momento em que elas depositam confiança em um homem que aparenta ser quem é, mas que, na verdade, é outro. Esse jogo de imagens e semelhanças nos coloca em contato com a eterna dúvida sobre o que o ser humano abriga dentro de si: amor e dor.

O horror pode estar disfarçado sob uma aparência gentil e estoica. Enquanto o sublime por vezes nos escapa devido à insistência da realidade objetiva. Seja como for, o que esses dois filmes díspares e complementares nos ensinam, cada um à sua maneira, é que a inocência infantil pode nos levar ao abismo ou a um céu de brigadeiro. De todo modo, a principal lição é ainda mais incômoda e escapa à própria condição da infância, ultrapassando essa fase e se perpetuando como autêntica característica da humanidade, ao longo de tempos, e com diferentes abordagens: a noção de que somos capazes de tudo.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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