“Enforque-se na corda da liberdade!” Antônio Abujamra
Marcelo Tas, 60, disse “não”. Mas, em seguida, disse “sim”. A mudança de posição veio depois que sua esposa, a atriz Bel Kowarick, relembrou Tas das duas condições que ele havia se imposto para estar à frente de um programa de entrevistas na televisão. “Ter carta branca e já ter passado dos 60 anos”, confirma o apresentador, que, em novembro do ano passado, passou a ser um sexagenário. “Dentro do horizonte de diversidades que pode surgir num talkshow, creio ser necessário ao entrevistador uma estrada de vida suficientemente rodada, para poder trafegar em qualquer terreno com tranquilidade”, justifica.
“Aí, fui sondar o grau de liberdade que eu teria com a direção da TV Cultura e fiquei plenamente satisfeito”, completa. O “último empurrão”, como ele diz, veio de uma frase que Antônio Abujamra (1932-2015) costumava repetir, dentro de seu extenso cartel de máximas implacáveis: “A vida é sua, estrague-a como quiser!”. “Topei!”, exclama Tas. Desde então, ele comanda o “Provocações” na TV Cultura. A atração ficou associada à figura controvertida de Abujamra durante 15 anos, e só foi interrompida com a sua morte, em 2015. O retorno aconteceu em 2019, mantendo a tradicional data de exibição: terças-feiras, às 22h15. Para a segunda temporada da nova versão, que recebeu Jô Soares na estreia, houve mudança de nome para “#Provoca”, em consonância com a intenção de aproximar o formato de uma linguagem talhada para a internet.
Estilo. Tas afirma que, ao aceitar o convite da emissora, decidiu “continuar o caminho, mas não repetir a trilha” de Abujamra. “Creio que assim contribuo para avançar no debate e, ao mesmo tempo, valorizar o legado do Abu, inclusive atualizando o acervo dele no canal do programa no YouTube”, destaca. Entrevistas realizadas de 2000 a 2015 estão disponíveis na rede. A célebre pergunta que habitualmente encerrava o “Provocações”, feita, por vezes, com insistência, foi mantida: “O que é a vida?”.
Já a recitação de poemas, que contemplava autores clássicos como Shakespeare, Tchekhov, Virginia Woolf, João Cabral de Melo Neto e Fernando Pessoa, acabou deixada de lado. “Muita gente vê semelhanças entre nós. Eu vejo algumas, mas, na origem, somos diferentes. O mestre Abu tem origem artística no teatro, eu na TV. A versão dele do programa traz a dramaticidade do palco. A minha tem a linguagem e o humor da comunicação eletrônica, televisiva e interativa da internet”, diferencia Tas.
Encontro. Ele próprio teve a oportunidade de ser entrevistado duas vezes por Abujamra, a última em 2011, quando surfava na onda do sucesso do CQC (Custe o Que Custar), na Band. “Para mim, Abu é como uma lente de aumento. Me senti sem escudos para me esconder diante dele, que foi sempre pontiagudo, implacável e afetivo. Uma combinação preciosa de qualidades na mesma pessoa”, elogia. Os dois conviveram por alguns anos nos bastidores da TV Cultura, período que o jornalista e humorista define como “um privilégio”.
Na época, Abujamra iniciava o “Provocações”, e, Tas, o “Vitrine”, que já debatia os impactos da internet no começo do novo milênio. O principal tema das conversas da dupla era “o ‘nada’, por telefone e no refeitório da emissora”, recorda. “Trocamos confidências a respeito de nossas inseguranças e até sobre a vida em família. Tenho uma frustração enorme de não ter conseguido concretizar uma pizza, combinada com ele e seu filho mega talentoso, (o músico) André Abujamra, antes da partida dele. Foi um grande mestre e uma inspiração”, admite Tas.
História. A lista de contribuições do paulistano de Ituverava à TV brasileira é longa. Formado em engenharia civil pela Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo), Marcelo Tristão Athayde de Souza começou, ainda na faculdade, a assinar a chamada escolar com o acrônimo que o tornaria famoso: TAS. Com o diploma na mão, ele havia tomado contato com o teatro de Antunes Filho (1929-2019), um dos mais respeitados encenadores do país, quando foi convidado por Fernando Meirelles, futuro diretor de prestígio do cinema nacional, a fazer parte da produtora independente Olhar Eletrônico. O ano era 1983, em plena efervescência pelas Diretas Já, movimento gestado no crepúsculo da ditadura militar no país. No olho daquele furacão, Tas deu vida ao repórter Ernesto Varela.
A personagem, abusada, irreverente e bem-humorada, tinha como característica questionar os políticos poderosos sem rodeios. “Percebi que muitas pessoas não gostam do senhor, dizem que o senhor é corrupto, é ladrão. É verdade isso, deputado?”, perguntou Tas, na pele de Varela, a Paulo Maluf, em 1984. E recebeu um ensurdecedor silêncio como resposta. “Eu não me encaixo em nenhuma das linhagens políticas. A minha posição é o livre pensar do meu guru (o autor, desenhista, humorista, jornalista e tradutor) Millôr Fernandes (1923-2012). Por isso, as pessoas ficam confusas. Não estão acostumadas com a liberdade. Posso dizer de boca cheia: nunca me alinhei ou fiz campanha para partido algum. O que não significa que eu não tenha atuação política. Critico, entro no debate, sugiro, aponto o que não concordo com todas as letras. Mas não me encanto com a política partidária e nem com falsas promessas, desde criancinha”, garante.
Liberdade. O flerte com a câmera rapidamente se transformaria em uma relação íntima, e a capacidade de marcar gerações se estenderia para os trabalhos seguintes. Nos infantis do “Castelo Rá-Tim-Bum”, ele foi Professor Tibúrcio e Telekid (do bordão “Porque sim não é resposta”). Em meados da década de 90, coordenou a criação de roteiros do “Telecurso”, na Rede Globo e em TVs estatais, além de ter atuado como apresentador do “Vídeo Show”, “Plebiscito MTV” e “Papo de Segunda”, na GNT. Por essas e outras, ele fala de cátedra quando o assunto é a invenção do “tubo mágico” que aportou no Brasil em 1950, pelas mãos de Assis Chateaubriand, o Chatô, que bancou toda aquela megalomania. “Geralmente, a TV é muito covarde. Joga na defesa”, critica o comunicador. “O ‘Provocações’ foi e ainda é um exemplo raro de programa de entrevistas que pode tratar de qualquer assunto com qualquer tipo de entrevistado”, avalia.
Em 2019, o semanário abriu espaço para os candidatos à presidência Fernando Haddad, do PT, Ciro Gomes, do PDT, Marina Silva, da Rede, e, ainda, a deputada Janaina Paschoal, o deputado Marcelo Freixo, o governador Ronaldo Caiado, o senador Randolfe Rodrigues, dentre outros, abarcando um leque amplo de espectros políticos. “Escolhemos os convidados com uma liberdade rara na TV, não há limites partidários, ideológicos ou de viés artístico ou estético”, assegura Tas, que diz ter se “surpreendido demais” com o líder indígena e escritor Ailton Krenak, a cantora Baby Consuelo, o humorista Jô Soares e a atriz Maitê Proença. “Também me lembro muito de uma resposta silenciosa do ator Pedro Cardoso, depois que perguntei se era muito difícil para ele ser quem ele é. Foi reveladora e tocante a atitude sincera e titubeante dele diante da pergunta”, rememora.
Frente à pandemia do novo coronavírus, as entrevistas da atual temporada passaram a acontecer por meio de videoconferência, casos do publicitário Washington Olivetto, do escritor Antonio Prata, da atriz Claudia Raia e do filósofo Luiz Felipe Pondé. “Tem muita gente ainda com quem eu gostaria de conversar. Aguardo ansiosamente o dia de entrevistar Ney Matogrosso. Do passado, adoraria entrevistar Cleópatra”, entrega o apresentador.
Lula. Crítico ferrenho das gestões do PT, Tas resolveu declarar o voto em Fernando Haddad no segundo turno da disputa pela presidência em 2018, contra Jair Bolsonaro, que terminou eleito. “Conheço o PT desde sua fundação. Nunca tive ilusões ou expectativas com o partido. Ao contrário da maioria dos meus amigos de esquerda, nunca acreditei nas boas intenções daquela turma. Acompanhei o duelo de egos e o triunfo da arrogância desde antes da primeira vitória de Lula”, ratifica. “Em 2018, declarei o voto em Haddad para sinalizar o meu desprezo e a minha preocupação com a ignorância crônica de Bolsonaro. Perdi, perdemos todos”, lamenta.
No último pleito, Haddad assumiu a cabeça de chapa petista após decisão judicial que proibiu a candidatura do ex-presidente Lula – à época, preso na carceragem da Polícia Federal, em Curitiba –, com base na Lei da Ficha Limpa. “Não sei se Haddad faria um bom governo. É um cara legal, um homem feito que já foi prefeito de São Paulo, mas, até hoje, não descobriu a sua autonomia e força política. Parece um menino assustado com a sombra de Lula. Este, infelizmente, se tornou uma pálida memória do que já foi um dia. Dono de um ego anabolizado, eclipsou o surgimento de novos líderes na esquerda brasileira. Triste fim para um ex-presidente que perdeu a grande chance de dar dignidade para a política nacional e se deixou levar pelo ‘canto da sereia’ de Sergio Cabral, (José) Sarney, (Michel) Temer e outros seres das sombras”, aponta.
Bolsonaro. Enquanto a pandemia do coronavírus caminha para superar 8 mil mortes no Brasil, o presidente Bolsonaro definiu a doença como “uma gripezinha”, se gabou da própria condição física em pronunciamento oficial e respondeu “e daí?” quando indagado por uma repórter sobre os números aterrorizantes. Afora isso, provocou diversas aglomerações em Brasília e reiterou seu posicionamento contra o isolamento social, o que levou à demissão de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde. Para completar, na última semana teve início uma série de acusações entre ele e o ex-juiz Sergio Moro, que pediu demissão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob a alegação de que Bolsonaro interferia na Polícia Federal.
“Não é fácil criticar um governo que não existe. Por enquanto, é apenas um amontoado de asneiras e trending topics (assuntos mais comentados no Twitter). Bolsonaro conseguiu algo impensável: aprofundar a crise econômica e as dúvidas sobre ética na política deixadas por Lula e Dilma”, observa Tas. Para ele, “no momento, o Brasil necessita de um governante sóbrio, discreto e sensato. Não de salvadores da pátria, como foram as últimas opções do eleitor. Enquanto não mudarmos a mira, sofreremos nas mãos de aventureiros de toda sorte. O atual falastrão de pouca ação é Bolsonaro”, sustenta.
Polêmica. Chamado publicamente de Judas por Bolsonaro, Sergio Moro – alçado ao posto de mais novo “traidor” da plebe bolsonarista – também acendeu a faísca de um embate entre Tas e o jornalista norte-americano Glenn Greenwald, editor do site The Intercept Brasil. Em junho de 2019, a plataforma começou a publicar uma série de reportagens, intituladas Vaza Jato, com conversas obtidas por Greenwald entre procuradores da operação Lava-Jato e Moro, e que, supostamente, revelavam a parcialidade do juiz em processos contra o ex-presidente Lula. Na rádio CBN, Tas disse que “o Intercept publicou os dados sem compartilhar com nenhum veículo, com direito à teasers dos próximos capítulos, à la Netflix”, e foi rebatido.
“O Glenn é um sujeito de mentalidade antiga, inflexível, com dificuldade patológica para ouvir críticas. Ele espanou porque eu critiquei a forma, não o conteúdo, como ele publicava os dados vazados da operação Lava-Jato. Chamei de ‘Jornalismo Netflix’, por criar suspenses e manchetes homeopáticas, que quase sempre não correspondiam ao material publicado. Depois da minha crítica, o Intercept se tocou e até começou a compartilhar o conteúdo do hacker de Araraquara (referência a Luiz Henrique Molição, preso pela Polícia Federal, acusado de ter invadido os celulares de autoridades) com outros veículos. Mesmo assim, de forma limitada, sem abrir com transparência o jogo”, sublinha. “A credibilidade do trabalho do Glenn foi por água abaixo, ajudada pela atuação militante e apaixonada pela figura do Lula”, completa.
Embate. O imbróglio entre os jornalistas prosseguiu em janeiro deste ano, quando Vera Magalhães foi anunciada como nova mediadora do “Roda Viva”, na TV Cultura. O entrevistado: Sergio Moro. O fato deu início a uma campanha virtual, encampada pelo próprio Greenwald, para que o The Intercept Brasil fosse convidado a participar da atração. “O seu grande problema, Glenn Greenwald, é encontrar espaço para estacionar o seu imenso ego. O ‘Roda Viva’ é uma instituição brasileira plenamente reconhecida. Não precisa do seu pitaco. Faça mais jornalismo e menos marketing, rapazola”, postou Tas. Greenwald rebateu com documentos vazados pelo WikiLeaks (site de divulgação de informações confidenciais de governos e empresas, fundado por Julian Assange) que continham um e-mail do arquivo da ex-senadora norte-americana Hillary Clinton, e que, segundo ele, mostravam como Tas teria sido usado para “validar e ampliar mensagens dos Estados Unidos”.
“Diante das minhas críticas, Glenn reagiu de forma infantil. Sugeriu no Twitter que eu seria um agente a serviço do governo norte-americano. Só sugeriu. Ele nunca tem coragem de falar as coisas claramente. É uma história antiga, de 2015, que ele já havia tentado faturar em cima. Tudo porque fui citado num e-mail enviado a Hillary Clinton, pela equipe de mídias sociais dela, como alguém influente no Brasil”, pontua Tas, que não abaixa a guarda, bem ao contrário. E não dispensa a oportunidade para uma derradeira alfinetada. “Sobre Glenn, prefiro ficar com a definição de Richard Dawkins, célebre escritor e biólogo inglês, que criou um verbete em homenagem ao estilo dele de trabalhar: ‘greenwalding’, ato de manipular um conteúdo para difamar alguém nas redes sociais, com texto precário travestido de jornalismo”, encerra.
Raphael Vidigal
Fotos: TV Cultura/Divulgação