“Lembre-se: pessoas sofridas são perigosas. Elas sabem que podem sobreviver.” Josephine Hart
Flor de primavera misteriosa, só aparece com metade da saia pra fora. Os primeiros pontos do sol curvam teus quadris elásticos. Vermelha: e no premir flora e no rugir: fauna. E na vida encontra miséria, discórdia, colérica porta aberta aos anjos e demônios. Uma menina sem olhos sonhava ser: a menina dos olhos de Ágata. Não tinha timbre de voz, não falava, era cega. Surda e muda a menina conduzia o mesmo trajeto para a escola: reprimida, invisível. Ninguém a via. Nem os pais da menina? Nem os pais da menina. A menina não tinha paz. Não tinha nome, nem medo, nem mãe ou faca. Não tinha faca a menina e este era um presságio bolorento dos dias repugnantes a que era entregue. Não tinha faca para passar manteiga, não tinha mãos para passear: maquiagem.
O rosto excessivamente branco não era culpa da maquiagem. Nem protetor contra o sol constante. O rosto excessivamente branco era da lividez da morte. A menina morta. Ninguém a viu. Ninguém a vira. Ninguém falara. Nem ao enterro da tal menina: compareceram. Tinham outros compromissos: honorários, horários, metas. Menina Maria. Menina Ágata. E eu escrevo. Menina morre. Um dia, uma tarde, uma noite: uma primavera real: como a abelha na flor: menina morta. Adornar os laços e neles num regaço capinar os aços chupar o melaço desta cana ingrata. Maço de cigarros que se fuma e traga, traça a fumaça: quem sabe o fim: num entardecer: cheio da essência: da cheirosa flor: rebola tóxico.
Raphael Vidigal
Pinturas: Obras de Pierre Bonnard.