“Então, coragem! Larga os humanos sentidos,
E no âmago do mundo entremos comovidos!
E digo com razão: o homem, ser pensante,
É como um animal no deserto perdido” Goethe
As pouco mais de duas décadas de existência enganam. Nesse período Octávio Cardozzo participou de coletivos musicais, lançou álbuns em grupo, esteve em cena em espetáculo em que se misturavam poemas e canções, apareceu em rede nacional em programa de auditório com direito a jurados, dentre outras peripécias semelhantes. Provas de que soube aproveitar, ou melhor, dedicou parte considerável de seu tempo à arte. Agora, a prosa não poderia ser outra. Cantor, compositor e produtor executivo na empresa Peleja Musical, atualmente Octávio concilia o curso de Literatura na UFMG com os preparativos para o lançamento de seu primeiro álbum solo, financiado coletivamente. “‘Âmago’ é meu primeiro disco solo, que é um resgate da minha essência como cantor e uma busca por maior entendimento daquilo que me toca, do que faz realmente sentido pra mim musicalmente. É este movimento de ir ao âmago e relembrar alguns desejos perdidos ou esquecidos pelo caminho”, retrata. Também a escolha de como fazê-lo não nasceu por acaso.
“A decisão pelo financiamento coletivo veio depois de conversar com muitos colegas de ofício que também o fizeram, e agora ao final eu entendi por que: o envolvimento do seu público com um sonho que é só seu é incrível. Além de fortalecer a cena da cidade, fortalecer a nossa própria carreira, a gente ainda consegue perceber até onde nossa música está chegando, onde nossa arte alcança”, afiança. Realizado através da plataforma Catarse, o projeto foi apoiado por uma centena de pessoas e superou a meta de pouco mais de R$15 mil reais estipulada. Entre as recompensas oferecidas destacam-se um exemplar autografado do disco em questão e também de álbuns coletivos que contaram a participação do artista, além de acesso ao camarim no dia do show de lançamento, previsto para março do ano que vem. “A expectativa para o lançamento é das melhores, pois reuni um time muito especial e uma banda dos sonhos de qualquer cantor, para um trabalho que será totalmente diferente de tudo o que eu já fiz, tanto de sonoridade quanto de estética”, orgulha-se.
ÂMAGO
O time a que o entrevistado se refere conta com Camila Rocha no contrabaixo, Di Souza na percussão, Gabriel Bruce na bateria, PC Guimarães na guitarra e Ygor Rajão no trompete. São eles que formam a banda base, mas é certo que o álbum também trará “participações muito especiais”, nas palavras de Octávio. Já a produção musical ficou a cargo de Rafael Dutra, também responsável pela gravação do álbum no “Estúdio Motor”. Além do lançamento na capital mineira, outra certeza de Cardozzo é que levará o espetáculo para Rio de Janeiro e São Paulo, onde formou público devido à participação no programa “Ídolos”, da Rede Record, em 2010. Ainda sobre as canções de “Âmago”, afirma: “O repertório é 90% inédito. A exceção é uma canção do Gustavito e da Luana Aires que ele já havia gravado. As demais são inéditas. Algumas compostas especialmente para o disco, como as canções escritas pelo Thales Silva (do grupo ‘A fase rosa’) e pela Deh Mussulini (do Coletivo A.N.A.), e outras que eu garimpei de compositores que ainda não estão na cena da cidade, como Leopoldo Rezende, Pedro Santos, Renato Mendes e Phil Albuquerque, e também dos que já vivem há mais tempo na estrada, como Tom Custódio da Luz, compositor incrível de São Paulo, e Elisa Pretinha (da banda Ménage)”, conclui.
CENA
Leonino, nascido em 19 de agosto de 1990, Octávio já pode se considerar uma figurinha reconhecida no cenário da sua cidade, ao menos entre seus pares e a uma fatia de público considerável. Porém, ele próprio avalia com ressalvas as condições para se estabelecer artisticamente na capital. “A cena cultural de BH é das mais lindas, desde o ressurgimento do carnaval de rua, passando pelos projetos de incentivo à música autoral, como o ‘Cantautores’, até os movimentos de compositoras, que são essenciais. Mas infelizmente esse movimento ainda é protagonizado pelos próprios artistas, que têm que tocar/cantar, produzir, fazer assessoria de imprensa, contratar estrutura, ser designer gráfico… tudo! O que menos fazemos é a arte em si”, lamenta. A causa para todo esse desgaste, na visão de Octávio, estaria principalmente centrada na visão de quem, hierarquicamente, integra certa posição de comando dentro das estruturas. “Ainda falta um pouco de movimento dos produtores da cidade em valorizar o que é da cidade. E que o que é da cidade não é só o que está na mídia ou fazendo turnê na Europa. Tem coisa de muita qualidade que não consegue chegar aos palcos”, garante. É a velha máxima de que santo de casa não faz milagre, diriam os antigos, mas as coisas mudam…
Tanto que um dos motivos para Octávio lançar “Âmago” foi justamente o desafio de saltar sobre algo novo. “A grande diferença entre participar de um projeto em grupo, como o ‘Alpercata’ ou o ‘Artesania Sonora’, e um solo, é justamente desempenhar os papeis que citei acima sozinho e assumir os riscos sozinho. O trabalho coletivo é sempre mais fácil e prazeroso, mas o trabalho solo também é necessário pra gente se reconectar com o que bate em nosso peito. E no final das contas vale a pena”, elucida de alma cheia e grande, com o sorriso de quem leu Fernando Pessoa. Nessa travessia, Cardozzo não nega luz nenhuma. “A literatura é uma arte que me influencia muito. Meu repertório é sempre guiado pelas letras e as poesias das canções. Inclusive, lanço em breve meu primeiro livro, uma novela chamada ‘Morro de saudade’. Outra arte que me guia é o teatro. Tento sempre unir essas três nos meus shows, como fiz no espetáculo músico-poético que teve uma crítica muito positiva, o ‘Maldito – Todas as palavras que já foram suas’, em companhia da poeta Bruna Kalil Othero e dos músicos André Milagres e Vinicius Mendes”, salienta. Mesmo sozinho, a cena na qual Octávio Cardozzo se insere e liberta está sempre prenhe de desejos e lanças artísticas por todos os lados e sentidos. No âmago.
ORIGEM
Dizem que os ditados perpetuam morais, se é assim Octávio Cardozzo as desfaz. É ele que mesmo não sendo filho de peixe, peixinho é, ao menos no mar cultural das Minas Gerais. Pois o “mar de Minas é no céu/pro mundo olhar pra cima e navegar/sem nunca ter um porto onde chegar…”, diz a sabedoria popular de domínio público cujo autor nunca patenteou a autoria. Ou, se chegou a fazê-lo, perdeu-se. “A minha família não tem nenhum antecedente musical. E também nunca foi de escutar música. Muito estranho isso. Então as minhas primeiras lembranças são da minha mãe fazendo almoço de domingo e escutando Roberto Carlos ou Fagner. O gosto pela música veio mesmo depois, quando meu irmão começou a trabalhar e gastava quase o salário inteiro comprando discos. Quando ele não estava em casa, eu escutava todos escondidos. E daí eu conheci Chico Buarque, Tim Maia, Elis Regina”, recorda.
Foi ainda nessa tenra infância que Octávio descobriu, ou, intuiu, o que queria fazer pela vida inteira quando “gente grande”. “Eu desde criancinha sabia que eu queria ser cantor. Eu assistia aos programas de TV e queria estar lá. No colégio eu ameaçava meus colegas, tinha os braços muito grandes para o tamanho do meu corpo, todos me queriam no time de vôlei, e eu só jogava se brincássemos de algum programa de TV”, confessa. Neste jogo lúdico, claro, ele era “sempre o cantor famoso”, e esbalda-se ainda hoje numa gargalhada gostosa, provas de que a alegria da criança parece ter encontrado seu rumo corpo de adulto. No entanto, houve também decepções, as tais “pedras no caminho” do poeta Drummond. “Aos oito anos eu ganhei um rádio gravador e ficava bravo quando gravava minha voz, cantando, e não aparecia guitarra, bateria, os instrumentos. Eu não sabia que existia isso, pensava que era só cantar e tudo surgia como na minha imaginação”, relembra com ares de sonho.
INFLUÊNCIAS
Antes de o sonho surgir, frente aos olhos reais, porém, Octávio habilmente construiu o seu próprio mundo, o que, segundo as teorias nada científicas, mas eminentemente empíricas de Rubem Alves, outro mineiro ilustre, encharca a alma e nos possibilita a realização do imaginário. “Eu gravava muitas fitas K7 e dava de presente pros professores, recortava minhas fotos de criança pra fazer a capa das fitas, minha atenção sempre foi voltada pra isso”, relembra o cantor. Dentre as referências, elege Maria Bethânia como “a maior”. “Acho ela completa! E une todas as artes que admiro no mesmo palco: música, teatro e literatura”, enumera, sem se esquecer da importância de outros: “Como compositor, sou fã de Chico Buarque, Milton Nascimento, Roque Ferreira, Paulo César Pinheiro, muitos!”, admite. Ainda nesse terreno fértil da arte, Octávio oferece perspectiva sobre a dimensão da cultura. “Quando a gente visita um lugar, o que nos chama a atenção, logo de cara, é a cultura deste lugar e das pessoas que ali vivem. É um dos quesitos que mais atrai a turistas e movimenta a economia local. Não pode ser deixada de lado! Não dá para ser o primeiro setor a ser cortado pelo governo em momentos de crise”, ele ratifica.
É pena que por aqui essa lógica nem sempre sensibilize, como provaram as mais recentes medidas, por exemplo, a medida provisória que exclui como obrigatória a disciplina artística da grade do ensino médio. “Infelizmente o Brasil só valoriza o entretenimento, aquilo que não exige raciocínio. Mas é natural vindo de um povo tão sofrido. As pessoas sofrem tantos golpes diariamente que chegam num ponto em que não querem pensar, querem apenas deitar no sofá e assistir à novela das nove”, lastima Cardozzo. “Mas a cultura é outra coisa, exige raciocínio, crítica, e ainda tem o seu lugar, mas deveria ser mais valorizada. Não tem maior liberdade do que a do pensamento livre. E essa é a grande chave para as transformações do nosso país: promover o pensamento crítico, a livre-consciência, o conhecimento dos nossos grandes pensadores e intelectuais. Grandes movimentos e mudanças do nosso país nasceram das artes, como o CPC da UNE ou o Teatro Opinião. Mas sempre em momentos de crise, quando deveria ser rotina”, eis aí a chave.
Para finalizar, Octávio resume a função, por vezes impalpável, de seu ofício. “A arte é a grande voz das minorias. O ser livre-pensador tem consciência do poder que tem e não abaixa a cabeça para esses políticos vergonhosos. O combate ao machismo, ao racismo, homofobia e demais opressões, através da arte, é a nossa grande arma!”.
Raphael Vidigal
Fotos: Paulo Abreu; e Flávio Souza Cruz, respectivamente.