Entrevista: Bruna Kalil Othero, a voz e o corpo da nova poesia

Bruna Kalil publicou livro de poesias aos 20 anos

*por Raphael Vidigal

“mastiguei
a poesia
com meus dentes civilizatórios
comi
as suas carnes
degustei-lhe
os ossos” Bruna Kalil Othero

Embora exista quem diga que para o poeta o silêncio é um sinal de perfeição, Bruna Kalil Othero começa com palavras “anônimas por serem voz do povo”, como diria Jorge Amado, e que bem prescindiriam de aspas, mas que ela faz questão de assinar para se juntar ao coro. “Primeiramente, Fora Temer”, declara. Em seguida ao agradecimento pelo convite para a entrevista, a mineira da capital nascida numa primavera do ano de 1995 começa a traçar o próprio percurso por palavras que muitas das vezes nascem não se sabe de onde e vão para qualquer lugar, ou para todos os lugares, tal sua amplidão e sede de liberdade. “Eu já queria publicar desde os 15 anos de idade. Aos 19, já com a gaveta cheia, percebi que havia um livro ali. Encontrei uma estética norteadora – aqui, o quase – e organizei os poemas. Com a organização feita, fui à caça de editoras. Recebi alguns orçamentos, caríssimos inclusive, mas não queria publicar nesse esquema, que é o mais comum para autores iniciantes, infelizmente. Daí encontrei o Gustavo Abreu, editor da Letramento. Conversamos, ele gostou do projeto e seguimos parceiros até hoje”, celebra.

Como se constata, Bruna, aos 21 anos incompletos, publicou o primeiro livro aos 20, “Poétiquase”, no ano passado. Afora isso, sua experiência catalogada inclui também participação na antologia “Sarau Brasil”, de 2014, e nas publicações “O Emplasto” e “Germina – Revista de Literatura e Arte”. Com o poema “Memória Estéril” venceu recentemente, em julho, o prêmio Maria José Maldonado de Literatura, da Academia Volta-redondense de Letras.  Nele estão presentes os versos: “não insisto na memória/das coisas obsoletas/as cartas os namorados os poemas que escrevo/são filhos bastardos/sem colo/sem tetas”. Estudante de Letras na UFMG, a escritora empreende pesquisa que analisa a presença do corpo na poesia contemporânea brasileira de autoria feminina, publica em blogs, já escreveu peças de teatro, romance, contos e promete novo livro de poesias para o ano que vem. “Guardo um tanto de coisas novas na gaveta, leia-se Google Drive”, brinca. Para quem quiser encontrá-la, para além dos livros, Bruna também tem realizado e participado de diversos saraus e eventos ligado à literatura e as artes em geral na sua cidade.

CENÁRIO
Para uma artista com o ímpeto do novo e a ousadia de derrubar estigmas como Bruna Kalil os clichês servem como papéis de origami, e não os papéis definidos que se pareciam com pedras de outrora. Portanto, a máxima de ser “produto do meio” é verdade até a página quinze. A escritora avalia com ressalvas e certo entusiasmo o cenário artístico e literário do estado de Drummond, Sabino, Rubião, Ary Barroso e tantos outros. “Minas Gerais sempre foi um espaço muito acolhedor à arte. Belo Horizonte também. Nos últimos anos, quando passei a frequentar os eventos da cidade, sarau, lançamento de livro, mesa redonda, percebi que uma sociedade secreta da cultura se escondia pelas esquinas. Aqui é assim: você conhece uma pessoa, e, de repente, já fez amizade com todos os artistas da cidade”, detecta. O problema não parece ser a falta de oferta. “Em BH tem evento cultural quase todo dia, eu mesma vou nuns dois, três, por semana. O problema que eu acho é a pouca divulgação. Acaba que, por ser uma sociedade secreta, vemos sempre as mesmas pessoas”, lamenta. E a formação de público é um entrave.

Bruna, no entanto, não é de referendar a imobilidade dos acontecimentos, e como Bertolt Brecht, o dramaturgo alemão, capta a constante transformação. “Mas percebo que isso vem mudando, a cada evento eu vejo caras novas, gente que não frequentava e agora frequenta, o pessoal levando amigas, amigos. É um prazer acompanhar de perto esse renascimento contínuo da arte e da literatura na minha cidade”, anima-se. Se em outros tempos havia um foco de acomodação cultural centrado prioritariamente no Rio de Janeiro e em São Paulo e as notícias e trocas de informações levavam meses para circular, hoje a tecnologia permite posturas e interações totalmente diversas. É graças a ela que Bruna acompanha, através da internet, “muita movimentação em São Paulo, Rio Grande do Norte e Paraná” e cita como exemplos as editoras Patuá, Jovens Escribas e o evento LITERCULTURA, em respectiva alusão aos estados provenientes. Desta maneira, o mote e a inspiração antropofágica, alçadas inclusive a títulos nas criações poéticas de Kalil, ampliam suas possibilidades para dentro e fora do corpo poético nascido nas Minas Gerais.

INFLUÊNCIAS
Bruna Kalil Othero não titubeia ao eleger sua guia, a quem também confere o epíteto de “religião”. A presença de Hilda Hilst pode ser constatada na maneira circular, redonda, com que a poetisa mineira elabora seus versos, no ritmo preponderantemente sonoro, que guarda o impacto no que podemos considerar a cor da palavra, pois sua poesia é, ao mesmo tempo, verbal, concisa, e palpavelmente imagética, como um quadro pintado com as tintas mais exuberantes. Tal como Hilda Hilst, mística que enxergava os milagres divinos na pulsão da carne, na natureza que se esgarçava e se reproduzia frente a seus olhos todos os dias. Talvez por estes paradoxos que compõe a vida a autora dos versos “acabei de ler uma carta/mas/há duas horas/tinha um homem/dentro de mim (…) o poema está pronto/cru/sem lingerie” diga que já nasceu poeta. “Eu, na verdade, não decidi ser escritora. Sempre foi assim. Desde que aprendi a escrever, escrevo. A literatura que me decidiu”, reflete. No entanto, nunca faltou o apoio dos pais. “Aqui em casa a única coisa que podia comprar sempre era livro, equivalente ao arroz e feijão de cada dia”, compara.

“Eles me incentivavam demais, levavam em feiras literárias, encontro com escritores. Eu comecei a ler e escrever muito cedo, com quatro anos já fazia tudo sozinha. Aprendi rápido por um desejo de independência, já que nem sempre meus pais podiam ler pra mim”, sublinha Kalil, que também recorda seus primeiros encontros com a palavra poética. “Talvez tenham sido as músicas do Vinicius de Moraes, ou o ‘Isto ou Aquilo’ da Cecília Meireles, não sei”, confessa. A partir daí, abriu o leque para novas influências e experiências literárias que se tornariam vitais. “Oswald de Andrade, Ana Cristina Cesar, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Clarice Lispector, Machado de Assis, Manuel Bandeira, e, claro, meus contemporâneos, principalmente as mulheres, que não cito por nome porque são muitos, imensos”, considera. E retoma um de seus temas preferidos. “Acho que o escritor é um antropófago por excelência. Então, tudo que a gente lê, acaba influenciando. Mesmo se não gostar, porque aí não vou querer fazer parecido. Acho também que a literatura não se faz no vácuo, então é certo que levo comigo traços de outras áreas”, diz.

CONTEMPORÂNEA
Dentre as outras áreas a que Bruna se refere destaca-se o teatro, onde empreendeu experiência pelos palcos a partir dos dois anos de idade. Como se vê, Bruna nunca acha que é cedo demais para saltar sobre o novo. Mas não fica só por aí, como jamais fica para quem, como também ficou claro até aqui, possui fome antropofágica. “Também gosto de incorporar cinema e música, tenho poemas com cenas de filmes, versos de canções. Adoro a possibilidade desse hibridismo, do intercâmbio, conquistas tão contemporâneas”, salienta. Se a abordagem do tema não é de todo novidade pode-se afirmar com o risco latejante nas veias que o estilo de Bruna Kalil é único, por que, embora influenciada por Hilst, que tocou nesta questão, e algumas ainda mais comedidas, como Sylvia Plath, a artista mineira não torna o acontecimento em esfera suspensa, inalcançável, através da sublimação, costume clássico do feitio, mas exibe a capacidade de permanecer roçando a língua de tal maneira precisa que antes do erótico consumir-se no enfado ou na vulgaridade ela se desfaz, acaba, e, por isso mesmo, todo aquele impacto continua irrefreável.

Sobre como tudo começou, a origem das coisas, Bruna retoma sua percepção instintiva. “Olha, não sei. Quando eu vi, já estava fazendo. Como leitora, me agrada ler o corpo, as pulsões, os desejos. Escrever sobre isso foi completamente natural. A literatura sempre é política, né? E eu, como mulher, usar uma poética da sensualidade, pratico um ato político. Dizendo: ei, homens, mulher também fode. Também goza. E escrever com um eu-lírico feminino é também feminista. Pra levar essa igualdade. Porque assim, literatura é privilégio. Sempre foi. Poder escrever, nesse mundo tão injusto, é um privilégio enorme. Então, eu uso isso pra levar as discussões sociais pra esse meio que, historicamente, sempre foi masculino, velho, branco, heterossexual”, explica, como quem, mais de 30 anos depois, sente a necessidade de repetir e complementar o grito dado por Leila Diniz e Elke Maravilha nas históricas entrevistas para “O Pasquim”. “Em 2016, não dá pra escrever ignorando as diversidades. É ou burrice ou um conservadorismo arcaico. Eu, pessoalmente, não aguento mais ler livros com protagonistas escritores brancos sentindo vazios existenciais. Oh, coitadinho do homem padrão! Já ficou chato isso”, reclama.

LIBERDADE
“a poesia/me pega de jeito/me joga na parede/enfiando a mão na minha/calcinha correndo os dedos/famintos sobre/minha pele/doce/a poesia me chupa gostoso/prova o meu/gosto/me provoca me/morde me dá o/gozo/a poesia/me come/me penetra/me descobre me revela/gozando em cima de mim/mas eu não cuspo:engulo”. Com essa liberdade escreve Bruna Kalil, e avisa que não vai parar por aí, afinal de contas acompanha o movimento de seu tempo, de seus pares, e se for preciso acelerá-lo, não será problema, ao contrário, só não se pode ficar atrelado a velhas práticas e doutrinas ditas inabaláveis que a vocação libertária mais e mais abala. “Hoje, tem tanta gente se libertando, saindo dos armários, é uma delícia. A escritora, o escritor, precisa se atentar ao que borbulha ao redor dele. Literatura não se faz mais no gabinete. Ela acontece na rua”, sugere. É com essa mesma visão que Bruna se recusa a traçar limites, por exemplo, entre arte e entretenimento. “Quais os critérios dessa separação? Arte é a coisa no pedestal, da crítica; e entretenimento é o que diverte? Se for assim, pra mim, Victor Hugo, Dostoievski, Virginia Woolf, é tudo entretenimento, porque eu me divirto lendo”, afiança.

E elabora os últimos versos corporais e sonoros deste pequeno ínterim da existência, que quando onde faltaram palavras, houveram pulsações, e a um tempo acomodaram-se ambos, prenhes de desejos. “O que eu acho é isto: arte muda a gente. Se a gente lê um poema e o dia ganha outra cor, acabamos de experienciar a sensação catártica. Mas se isso acontece pra você com uma música sertaneja, ou uma novela da Globo, tudo bem também. Quem sou eu pra falar que isso ou aquilo não é arte, entende? É muito arbitrário. Não gosto de hierarquias. O papel da arte? Ela tem que ter papel? Não serve pra nada, no sentido prático – e justamente por isso, serve pra tudo. Citando a Clarice Lispector: ‘eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada.’ Pois é, não altera, mas altera. Entende? Um paradoxo imenso. Na minha vida em particular, altera em tudo, mas de tanto alterar, acaba que não altera, porque eu já me acostumei com essa alteração constante. Sei lá. Só o que eu sei é que, pra mim, não há vida sem arte, sem poesia. O pôr do sol é poesia, o beijo na pessoa amada é poesia, o poema no papel é poesia. Se você quiser que seja. Arte é liberdade. Entende? Sei lá”.

Bruna Kalil Othero é autor de "Poétiquase"

Fotos: Ana Elisa Ribeiro; e Túlio Castro, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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