“Um homem caminha por uma floresta sombria, perigosa, repleta de bestas selvagens. Uma rede circunda toda a floresta. O homem tem medo. Ele corre para fugir das bestas, mas cai num fosso negro como breu. Milagrosamente, ele fica preso por duas grandes raízes. Ele sente o hálito quente de uma enorme cobra que jaz no fundo do fosso, pronta para dar o bote.” Krishna Dvapayana Vyasa
O mistério se impõe nos filmes de Abbas Kiarostami, embora, até mesmo a sua existência, seja revelada aos poucos. Esse talvez seja o grande trunfo de seu cinema que, sob uma aparente monotonia, aos poucos distende as presilhas de um rigoroso véu submetido também a um rigor estilístico. Há, portanto, duas peças que se movimentam simultaneamente nas películas de Kiarostami, embora pareçam distintas, pois a forma, o estilo, as invenções, rupturas, quebras, que o experimentalismo por vezes radical do cineasta oferece não são nunca enfeites retóricos, mas servem para contar a história ou, ainda, encobrir o mistério que como nos clássicos filmes se revelará no final quando não em doses homeopáticas distribuídas ao longo de seu processo. Tudo a serviço de uma obsessão de Kiarostami, as emoções e os sentimentos da alma humana, tão ou mais misteriosa do que a resposta duma equação desvendada.
Iraniano, Abbas utilizou motivos caros à sua pátria para compor sua obra, sobretudo nos primeiros filmes e, com especial atenção, ao premiado “Gosto de Cereja”. Porém soube realizar a transição do micro para o macrocosmo do mundo globalizado, e não sucumbiu jamais ao regionalismo puro. Exemplo é o surpreendente “Cópia Fiel”, filmado na Itália numa parceria com a França, tendo Juliette Binoche como protagonista, ela que já havia atuado, junto a outras tantas atrizes iranianas em “Shirin”, sem dúvidas a experiência mais impactante de Kiarostami no cinema e a sua contribuição mais enfática. Ali estão presentes todos os elementos que caracterizam o cinema de Abbas, o mistério, pois nada de visual nos é fornecido da história contada, a emoção humana de uma maneira nunca vista na sétima arte, com rostos que, enquadrados, reagem ao que lhes é ofertado e, nessa junção, o rigor formal a serviço de uma proposta didática: afinal o que vemos quando vemos um filme?
Raphael Vidigal
Fotos: Sholeh Zahraei; e divulgação, respectivamente.