14 músicas brasileiras contra o racismo

“Não é só a morte que iguala a gente. O crime, a doença e a loucura também acabam com as diferenças que a gente inventa.” Lima Barreto

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País da mistura e da diversidade, o Brasil ainda paga pela frase histórica de Joaquim Nabuco, inclusive incorporada por Caetano Veloso em música: “a escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional”. A influência do negro e também do índio na cultura tupiniquim provém tanto desses dialetos, dos ditados populares, das expressões, quanto da dança, do jogo, da capoeira e, em especial, da canção. Assim como nos Estados Unidos, nossa maior vertente de composição popular se vê impregnada pela raiz africana. Do samba, ao rock, à música soul, até a conformação da sigla MPB, também entendida como “música preta brasileira”, selecionamos 14 importantes temas no combate ao racismo, essa prática tão carente de ritmo.

O Canto dos Escravos (domínio público, 1928) – Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Doca da Portela
Lançado pela Eldorado em 1982, o disco “O Canto dos Escravos” remonta a pesquisa empreendida por Aires da Mata Machado Filho na Chapada Diamantina no ano de 1928, quando recolheu “cantigas populares em língua africana ouvidas outrora nos serviços de mineração”. Segundo ele próprio, foi através de “notas apressadas” que este tesouro da história nacional tomou forma e corpo, 53 anos depois, através das vozes de Clementina de Jesus, do sambista paulistano Geraldo Filme e do carioca Doca da Portela, trio extremamente identificado com as causas negras e o combate ao racismo no Brasil. Ao todo a coletânea apresenta 14 cantos e mais duas faixas extras.

Tributo a Martin Luther King (sambalanço, 1967) – Wilson Simonal e Ronaldo Bôscoli
Wilson Simonal não era santo, e tampouco o diabo que o pintaram após o polêmico e controvertido envolvimento com as forças de segurança do Estado durante o período nefasto da ditadura militar do Brasil. Por outro lado, é inegável que representou uma vitória de classe, o negro que ascende de condição, circunstância rara no país, cuja exceção reside, justamente, em profissões de destaque e com pouco mercado, como a música e o futebol. Embora não fosse ligado a movimentos sociais, Wilson Simonal se afirmava, e identificava-se com a luta do negro nos Estados Unidos presidida por Martin Luther King, para quem compôs um tributo em parceria com Ronaldo Bôscoli.

Negro é Lindo (samba-rock, 1971) – Jorge Benjor
Jorge Benjor esbanjava sincretismo no álbum “A Tábua de Esmeralda”, um marco da cultura nacional, lançado em 1974. Três anos antes, porém, a posição de orgulho da raça se fazia enxergar no título do álbum de 1971, “Negro é Lindo”. Samba-rock bem ao caráter do compositor, que infundiu uma marca única e indissociável no nosso cancioneiro, tratado por muitos como revolucionário, a canção prega bem os valores de Jorge. Com seu habitual sotaque, sua inconfundível dicção e o ritmo próprio do violão, Jorge Benjor afirma sem meias palavras as qualidades da sua cor, e lança um aviso aos preconceituosos: “Negro é lindo/Negro é amor/Negro também é Filho de Deus”.

Podes Crer, Amizade (música soul, 1972) – Tony Tornado e Major
Tony Tornado foi um estouro para os palcos de todo o país ao invadir a casa das pessoas pela televisão no Festival Internacional da Canção empunhando a música “BR-3” e dançando de maneira eufórica e entusiasmada, com o molejo próprio dos negros. Um ano depois, em 1971, invadiu com o punho em riste a apresentação de Elis Regina, no mesmo Festival, para saudá-la pela interpretação da música “Black Is Beautiful”, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle. Saiu de lá algemado. Ícone da cultura negra, da resistência, do sucesso e da superação, Tony escreveu sua história na música, nas novelas e no cinema do Brasil. “Podes Crer, Amizade” confirma essa força do Tornado.

Pérola Negra (MPB, 1973) – Luiz Melodia
Luiz Melodia era contestado por ser negro e não compor samba, ainda mais sendo filho do histórico bamba Oswaldo Melodia, que lhe valeu o sobrenome artístico. Por essas e outras foi rotulado, quando de seu aparecimento, como “maldito”, ao lado dos compositores Sérgio Sampaio, Jorge Mautner e Jards Macalé, acusados de criações herméticas, de difícil assimilação pelo público. O sucesso de vendagens de discos e a popularidade crescente desmentiu o rótulo da mídia. Com sua poesia afiada, ferina, distante das obviedades, mas, ainda assim, comunicativa, Luiz Melodia compôs odes para a beleza, como a música “Pérola Negra”, uma canção de amor de 1973. Sem distinção plausível.

Mandamentos Black (baile, 1977) – Gerson King Combo, Augusto César e Pedrinho
Gerson King Combo talvez tenha representado como ninguém a voz dos que não eram ouvidos naqueles idos de 1970. Num país amordaço pela ditadura militar e a censura prévia, os silêncios se faziam muitos, por toda parte. No entanto, havia uma parcela da população que, mesmo em tempos ditos, institucionalmente, democráticos, eram os últimos da fila. A periferia se apoderou, paulatinamente, dos meios de comunicação, até alcançar o rap e o funk carioca. No entanto, foi com Gerson King Combo, em 1977, que esses bailes começaram a ferver. “Mandamentos Black”, parceria com Augusto César e Pedrinho, fala, de maneira simples, o que o povo queria ouvir e dizer.

Sarará Miolo (tropicália, 1979) – Gilberto Gil
O tropicalista Gilberto Gil sempre empunhou, dentro de suas principais propostas e demandas, a bandeira do movimento negro e contra o preconceito racial no Brasil. Figura de destaque, proativa, Gil conta ainda com uma gama de recursos e influências, raramente se valendo do artifício panfletário. O compositor costuma abordar o tema de maneira perspicaz, sábia, a que melhor atingia o coração e a consciência. Além dos trabalhos relacionados a Bob Marley, trafegou pelos blocos negros do carnaval da Bahia, como o “Ilê Ayê”, e dedicou o disco “Realce” quase que inteiramente a esse tema, só que em múltiplas abordagens. Um dos exemplos é a espirituosa “Sarará Miolo”, de 79.

Brasil Mestiço, Santuário da Fé (samba, 1980) – Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte
A mineira Clara Nunes, natural de Caetanópolis, no interior do estado, foi, sem dúvida alguma, a principal voz do sincretismo religioso no Brasil. Ao aderir à umbanda e ao candomblé, cravou sua marca no nosso samba já de tantas intérpretes e interpretações. Além dos adereços, das danças, e do cabelo, Clara se portava como uma autêntica filha da influência africana no país. Interpretava as músicas com esse sentimento. O samba “Brasil Mestiço, Santuário da Fé”, composição feita especialmente para ela pelo marido Paulo César Pinheiro e o parceiro Mauro Duarte em 1980, comprova essa tese. O batuque da Cabala, da Umbanda e da Luanda se integram no canto de Clara.

Sorriso Negro (samba, 1981) – Jorge Portela e Adilson Barbado
Dona Ivone Lara foi a primeira mulher a ter um samba-enredo cantado na avenida no Brasil. Como se não bastasse, mulher negra, pobre, imersa em reduto machista e de preconceitos. Mas Dona Ivone Lara venceu todos eles, com voz mansa e andar macio, embora se impondo pela graça de suas músicas e o talento que comprovou na raça. “Sorriso Negro” foi um presente dos amigos Jorge Portela e Adilson Barbado para gravar no álbum da cantora de 1981, que recebeu este título. Verdadeira música de afirmação e de combate ao racismo, confirma entre seus versos: “Negro é a raiz da liberdade”. A música foi regravada pela trupe do “Fundo de Quintal” e por Mart’nália.

Olhos Coloridos (música soul, 1982) – Macau
Sandra de Sá surgiu no embalo da soul música brasileira capitaneada por Tim Maia, e que contava ainda com Cassiano, Hyldon e Lady Zu. Com sua voz rascante e interpretação visceral era chamada por Cazuza de “a nossa Billie Holiday”. As atitudes de Sandra dentro e fora do palco sempre foram indissociáveis, exemplo de artista que se entrega ao ofício e vive a vida em cada música. “Olhos Coloridos” encontrou a intérprete perfeita em Sandra. Essa música de Macau, lançada em 1982, tornou-se emblema e manifesto do orgulho negro, além de um puxão de orelhas aos desavisados. “Todo brasileiro tem sangue crioulo”, avisa antes de entrar no refrão que exalta o cabelo sarará.

Lágrima do Sul (Clube da Esquina, 1985) – Milton Nascimento e Marco Antônio Guimarães
A linguagem das melodias e das letras do “Clube da Esquina” e de seu mentor mais conhecido, o mineiro de coração, mas carioca de nascimento Milton Nascimento, se harmonizam numa aparente discrição, cuja força perene dos versos ressoa pela suavidade das notas, da imprescindível elegância. Porém, e mais de uma vez, quando é necessário, essa voz se insurge de maneira arrebatadora e menos quieta. Exemplo pronto é a música “Lágrima do Sul”, parceria com Antônio Guimarães que integra o disco de Milton “Encontros e Despedidas”, lançado em 1985. Sem abrir mão da poesia, da delicadeza, da sensibilidade, Milton Nascimento combate o racismo e exalta a força africana.

Sá Rainha (MPB, 1999) – Maurício Tizumba
Maurício Tizumba é um militante da causa negra nas Minas Gerais e no Brasil. Ator, compositor e cantor, natural de Belo Horizonte, movimenta a cena na capital e pelo interior do estado, com participações em peças de teatro pela “Cia. Burlantins”, formada exclusivamente por atores negros, e até em especiais de televisão, como no caso da novela “Saramandaia”, exibida pela Rede Globo em 2013. Tizumba é um dos principais entusiastas do Congado, da Folia de Reis e de outras manifestações típicas do interior de Minas trazidas pelos povos africanos ao Brasil. Na música “Sá Rainha”, lançada no álbum “África Gerais”, o músico utiliza sua descontração para criticar o preconceito.

Identidade (samba, 1999) – Jorge Aragão
Jorge Aragão é bem direto na música “Identidade”, ao abordar o preconceito que acontece de maneira velada no país. Ao discriminar o elevador como o ambiente dessa prática, Aragão faz um recorte para ser mais incisivo ao diagnosticar costumes tristemente enraizados. O samba lançado em 1999 discorre também sobre frases de preconceito racial históricas no Brasil, dentre elas a do tal “preto de alma branca”. Sem perder o ritmo e o suingue, Aragão mostra o descompasso de país formado essencialmente pela miscelânea, mas que relega muitos daqueles que o construíram a posições inferiores, com pouca perspectiva de ascendência social. A não ser pelo elevador de serviço…

Festa de Caboclo (samba, 2001) – Martinho da Vila
Martinho da Vila foi buscar em suas raízes angolanas a inspiração para trabalhos mais recentes. Observador arguto do cotidiano, cronista dos nossos costumes em músicas, o segundo compositor mais famoso de Vila Isabel sempre aliou o humor às suas críticas sociais, como no exemplo de “Pequeno Burguês” que, sem se dirigir diretamente ao negro, mostra a triste situação do pobre no país, que invariavelmente possui a cor dos escravos que, segundo Joaquim Nabuco, ainda determinam nossa característica nacional. “Festa de Caboclo” é celebrada no terreiro de Martinho da Vila, que estende a todos o convite, sem distinção de gênero, cor, ou classe. A união que a música aspira.

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Raphael Vidigal

Fotos: Montagem com Sandra de Sá, Luiz Melodia, Dona Ivone Lara, Tony Tornado, Clementina de Jesus e Martinho da Vila, do alto da esquerda para a direita; e divulgação de foto do artista Gerson King Combo, respectivamente.

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3 Comentários

  • Rap é um estilo musical estrangeiro e de nicho. Seu alcance no Brasil é negros já politizados ou brancos sensíveis a causa negra. Dizer que é o gênero que mais representa o movimento anti-racismo é de um vira-latismo sem fim, quando a música brasileira inteira tem origem negra, com exceção do sertanejo. Mas Racionais merecia uma música na lista.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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